José Alcides Pinto
Hinário e Prece
à Poesia de Soares Feitosa
Soares Feitosa está mudando o rumo
da poesia brasileira. Culto. Oráculo de Delfos. Passa por cima de
rios mares continentes promontórios. Leviatã nordestino. Tribo das
andorinhas azuis, como já dissera Castro Alves: gênio, entre os seus
poetas eleitos. Aqui também podemos ouvi-lo falar de Bilac como de
Cruz e Sousa, Fernando Pessoa e Augusto dos Anjos, Artur Eduardo
Benevides e Francisco Carvalho, Pedro Henrique Saraiva Leão e Dimas
Macedo, Juarez Leitão e Sânzio de Azevedo, entre muitos outros para
ficar só com os vivos. Da Grécia aos sertões de Inhamuns um pulo,
sem esquecer o Gerardo por dentro, o Gênese e todas as profecias,
que o homem é dado às transcendências: de Abraão a Davi, Sara e sua
numerosa prole, as judias mais formosas; também Josué, Jacó e toda a
sua progênie.
O poeta Soares Feitosa vai
anotando - desde seu primeiro livro — Réquiem em Sol da Tarde — tudo
o que vê e o que não vê, o que sente e o que não sente, o que existe
e o que não existe, porque afinal de contas toda a ausência está
presente no mundo; tudo anota em seu caderno de palavras, agora
impresso, numa apresentação primorosa, pelas Edições Papel em
Branco, que singularidade! Ele, Soares Feitosa, é o poeta de um
alfabeto misterioso, mágico, no emprego das vogais e consoantes mais
estranhas: metáforas inusitadas e surpreendentes. É um cristão
primitivo, transcendental como um rio, um pássaro em alto vôo. Como
os anjos navega em céu aberto, sem barco, sem bússola, porque é o
próprio espaço a se refazer no tempo de sua ciência e sua arte.
Símbolo e signo da modernidade: arquétipo. Ele é o mais antigo
pastor e módulo cibernético mais moderno. Integra-se no avanço da
Internet e mostra seu completo domínio nesse campo. Inaugura seu
"Jornal de Poesia", que hoje abriga poetas dos quatro continentes,
ou dos cinco, porque ele já não sabe bem onde começa a geografia e a
história de seu país. Não conhece os limites, as zonas de
turbulência, mas sabe que a poesia existe no tempo, e preexiste sem
começo e sem fim.
Soares Feitosa, como já disse em
outra oportunidade, deu um susto nos poetas brasileiros deste fim de
século com sua estréia Réquiem em Sol da Tarde onde a habilidade
artesanal do autor foi posta a toda prova. Obtendo enorme sucesso,
seu talento confirma no livro que ora analisamos — Psí, Penúltima,
livro este que integra duas virtudes teologais? — escrito para
eruditos e críticos de poesia, e para o público de um modo geral. O
título da obra é para quem sabe saber a sabedoria — fonte onde se
oculta o reino das palavras e seu significado plural.
Pois aí está (o) do título. E
também inseridos no texto, estão depoimentos dos maiores vultos de
nossas letras — de Jorge Amado a Lêdo Ivo, Ivan Junqueira a Hélio
Pólvora, César Leal a José Louzeiro, Millôr Fernandes a Thiago de
Melo, Maria da Conceição Paranhos a Manoel de Barros, Osvaldo
Carneiro Chaves a Antônio Massa, nosso jovem professor filósofo;
mais uma vintena deles, que o autor tomou o país de assalto, espécie
de tornado, levante de Canudos, bravura de cangaceiro, Lampião;
estopim de fogo, Antônio Conselheiro abençoando os homens com o seu
rosário de sementes graúdas, sem esquecer Padim Ciço e sua leva de
romeiros vestidos de mandapolão e pés descalços, que a Fé não tem o
espinho nem a poeira que cega.
Tudo importa ao poeta e tudo é
objeto de suas investigações: os cantadores e os violeiros, o sertão
por inteiro, com suas andorinhas viajeiras, as avoantes que circulam
nas lagoas, as jaçanãs, o aboio troante dos vaqueiros, o assomo dos
macacos nas quebradas, que tudo por essas bandas respira sob o manto
de Deus Vivo e do Crucificado, dos crentes e cristãos circuncisados.
Ora, meus amigos, tudo isso e mais
do que isso e muito mais possa ser fazem parte da poesia desse poeta
genial — costela do Atlântico, que surge no pórtico da nossa
história literária como um verdadeiro profeta, um emissário da paz
entre os homens, como ainda Gerardo à esquerda e à direita, ceifando
o joio, para que o trigo da poesia se faça presença eterna. Tudo é
surpreendente neste livro: a linguagem nova, a dicção presentificada
na essencialidade das palavras, no avanço do tempo, perseguindo a
posteridade obstinadamente.
As palavras vão pendoando as
espigas, enchendo-as de leite e mel. As metáforas caem sobre as
sombras da tarde e as iluminam. E em tudo e por toda parte está o
ouro da melhor poesia, a inquietação do pássaro esquivo, saltando de
galho em galho, o rouxinol chilreando nas brechas do telhado, as
vertentes soluçando por entre as pedras dos riachos. Natureza
natureza natureza. É certo que "a alma fica melhor no descampado/ O
pensamento indômito, arrojado/ Galopa no sertão/ Qual nos estepes
corcel fogoso/ Relincha e parte turbulento,/ estoso, solta a crina
ao tufão". Isso é de Castro Alves. E isso lembra muito o arrojo
metafórico dos poemas de Soares Feitosa.
Poeta de vanguarda e experimental:
heróico, telúrico e lírico, ele dono (e proprietário) de muitos
recursos gráficos e visuais, faz e monta o poema como quer. Sua
técnica e a habilidade de lidar com as palavras são até então
desconhecidas. As palavras o reconhecem como se fossem um escravo
bom, obediente, orgulhoso de seu senhor. Monta e desmonta e remonta
— arquiteto da loucura e do sobrenatural. Não adianta destacar este
ou aquele poema como mostra de sua criatividade. Tudo nele é
original, e traz impresso em letras firmes a marca de sua
autenticidade.
Soares Feitosa, cobriu-se de
glória logo aos cinqüent’anos, data de sua entrada nas letras, até
então era um ilustre desconhecido. E foi essa ausência que o salvou,
porque sob o sol das hespérides amadureceu sem floração, como o
acontece aos mitos. Eles são!, são antes de existir.
O poeta Soares Feitosa deu "nome
aos bois", deu som e cor às cousa, à mulher deu o feitiço:
"Não lavei os seios
pois tinham o calor
da tua mão.
Não lavei as mãos
pois tinham os sons
do teu corpo"
(Femina)
Ao mar o poeta deu o estrugir
ruidoso por entre as rochas. Ele é o reflexo de seus poemas, como
Machado de Assis é o de Dom Casmurro, Alencar o Ipê de sua terra.
Chegou maduro para ser colhido e guardado por inteiro num silo, cuja
guarda só poderá ser confiada à parca fiandeira.
Que devo mais acrescentar "Quero o
perfume do lado de fora/ e a cera-da-abelha/ sertão." Por dentro do
favo estão os seus poemas, e na boca do povo, na praça, no meeting,
no oratório da capela, na oração da família reunida à mesa. Amém.
Quero-os (se posso querê-los) nos bolsões dos balandraus, misturados
ao rosário e ao Adoremus.
Leia o primeiro escrito de José Alcides Pinto sobre
Soares Feitosa
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