Myriam Fraga
Sete poemas
I
Não me deixes ficar,
Não me abandones
Neste ninho de abutres,
Neste burgo
Que espreita o mar
De cima de seus montes
Como fera que espreita,
Ave de rapina,
Atenta aos inimigos
Que surgem no horizonte.
Não me deixes ficar,
Não espedaces
O que ainda resta de mim,
Não abandones
A quem te deu o corpo
E o pensamento
E a quem pisaste um dia
Como pisa o dono
O chão de seus alquebres.
Não me esqueças aqui.
Arrasta com teu fado
Este bicho inocente
Que fareja teu rastro,
Esta pobre coisa triste
Que existe porque existes.
Ai, não me deixes não.
Apaga nos espelhos
A imagem que criaste,
O sono e o pesadelo.
Horas de sofrimento,
Instantes de alegria,
O açoite da chibata
E o bálsamo dos dedos,
O caminho para as Índias
E o rastro para o abismo
A curva de meu seio
Em tua mão tremendo,
Minha boca em tua boca
As sílabas repetindo
Deste amor que me trouxe
Como dote e destino,
Horas de sofrimento,
Instantes de alegria.
II
... às vezes o teu amor
É como o mel que embriaga
Mas às vezes como açoite,
Me corta o corpo em pedaços
E então me olhas com raiva,
Me humilhas, me maltratas
E tua língua tem o frio
Fino corte das navalhas.
Tuas palavras são farpas,
Punhal que fere e que mata.
Me desprezas como coisa
Que se usa e se despreza,
Como uma negra fugida
Que o feitor persegue e caça.
Triste amor que me separa
De minha terra e de tudo,
Amor que engole os minutos
Como cobra engole o rabo,
Amor que aponta o caminho
Mas não dá o itinerário,
Amor que arma suas velas
Mas depois afunda o barco,
Amor que arde em meu corpo
Como círio nos altares,
Como lâmpada na parede,
Lanternas que o vento apaga.
III
Maria de Póvoas,
Maria dos Povos,
Maria, alma ardente
E as mãos tão vazias...
Que vida enganosa
A tua, Maria,
Tecendo as esperas,
Somando as partilhas,
O sexo em chamas
E a fala macia.
Maria ... a cinza na testa,
A oração na madrugada,
Maria, um lobo na espreita,
Um verso como cilada,
O amor é como veneno,
Como sombra na calçada,
Assombração que faz medo,
Maria, é só um poeta
Caminhando pela estrada
E a noite esconde o segredo
De tua pele alvoroçada,
De tua língua, de seus dedos
Somente um poeta
E a chama
Que te confunde e reclama
O ontem já tão distante...
Tantos dias, longos anos,
Maria, tanto abandono,
Somente o vento nas folhas
E no peito... desenganos.
IV
Eu sou o avesso do mundo,
Eu sou a terra
Que pisaste, cuspiste, que esmagaste,
A poder de ferraduras
E de açoite.
Eu sou a terra
A quem amaste tanto
Que caíste a sangrar
Em suas pedras
E onde rolaste, porco,
A charfurdar na lama.
Eu sou a flor escura
De teu sexo
Buscando outras canalhas,
Outros usos,
Por desejares demais
E além da conta...
Não pode o amor humano
Ser medido
Senão na intemperança,
Na luxúria?
Neste bornal de pústulas
Tamanhas
Que criaste a teu gozo
E meu martírio?
Ó amor feito de nada
O que desejo
É apenas o côncavo do escuro,
Apenas
Habitar os teus olhos como pássaro
Que habita nestas torres,
Nestes altos
Campanários que soam pela tarde
Quando a tarde é como um pano
Que desatas
Ao vento deste mar,
Apenas uma vela
Neste oceano sem fim onde navegas,
Ó navegante bêbado!
Sem norte, sem destino, sem chegada...
V
Esta cidade tão suja
E tão deserta,
Esta cidade que ladra
À minha porta
Como um cachorro faminto
E que desperta
A lembrança de coisas
Tão remotas...
Esta Cidade-abismo
Que devora
O amor, a esperança, a mocidade...
E converte a beleza que cantaste
Em cinza fria, em pó,
Em sombra, em nada.
Esta cidade que arde
Como um câncer,
Como um cautério na carne
E que arrebata
A nós todo futuro
E a mim divide a vida
Em dois pedaços.
Esta Cidade, meu amor,
E como um claustro
Onde te ausentas de ti,
Do teu cansaço
De inventar equilíbrio
Ao desacerto.
Esta Cidade é como
Um corpo aceso,
Ofegante de mágoa e de desejo
Colado à tua boca que blasfema
De amor, de impiedade
E que arrebenta
Os diques do silêncio
Nestas tardes
Em que galopam soltos pelas veias
Meu sangue, meus desejos, meus alarmes,
Aves reinventando minhas mágoas.
VI
Como posso, Poeta,
Decifrar-te
Se és sempre a incerteza,
A dissonante
Face dupla do amor,
Sombria e clara?
E como maldizer
O sofrimento
Se ao martírio de amar
Me fiz constante,
Companheira da dor,
Irmã do engano?
Como posso, meu Poeta,
Nesta hora,
Desvendar em silêncio
Teus segredos
Inventando entrelinhas
Na escritura
Vacilante e indecisa
De teus dedos?
Como posso falar
Do desespero
Se a força do desejo
Em tua boca
É um delírio de pragas
E de beijos,
Se a angústia de perder
O que me mata
Faz-me a vida odiar
Mais do que a morte,
Pois que ao perder-te
Perco mais que a vida,
Perco o sonho, a memória,
A fantasia...
E este gosto de viver
Como quem morre.
VII
Caminhos, encruzilhadas,
Becos, vielas, quebradas,
Ladeiras que se despencam,
Caminhos que se bifurcam,
Beijo salobro das praias,
Beijo doce das nascentes,
Brejos, diques, atalaias...
Uma cidade é como gente
Que se alisa e maltrata,
Como uma fêmea deitada
Que o amante navega e sente...
Assim se fez de meu sangue
Esta cidade encantada,
Este burgo, esta alimária
Como uma fera empinada,
Esfinge que espia o Outro
Surgindo da encruzilhada...
Me devoras, te devoro,
No fim não restará nada.
Só a sombra na parede,
Somente o nó da laçada,
Ou melhor:
Resta o que resta,
A tua boca de brasa,
O sinal desta passagem
Como uma gesta tatuada.
Como um vendaval de açoite,
Vento sul de madrugada.
Resta a poesia nascendo
De tua língua danada,
Resta o poema crescendo
Como flor e como espada,
Resta o que resta, restolho,
Que de mim não restou nada
Além do verso e da mágoa.
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