Soares
Feitosa
Salomão
Segundo Movimento:
Os cantares de pulso
Um dia, Hiberia,
era mar,
um mar de poente,
e me arribei de ti.
Data? — por que me queres
com data?,
quem sabe de datas!? Os
pinhos,
os vinhedos,
os montes, aquela aldeia
moira —
e tu, Portugal, s’escondiam
calmos
à risca do mar;
e o areal — era África.
Às minhas costas,
num bracejo — bracejar
de dias e dias:
era escuro o mar ibérico,
também escuras as
águas mouras
porque nelas (occidente)
se depõe
o Sol.
Cem dias,
370 milhas — não
eram léguas? —
braças, alqueires,
eiras, planos? —
sei lá de que palmos;
eis os perdidos elos, inútil
achá-los:
os porões, o tombadilho;
o que mais importa? — datas
a quê?
Desliguei todos os relógios,
entortei-lhes os ponteiros,
joguei-os ao mar.
Este corpo, este fardo
— despejei-me à súbita manhã
da aurora, onde um roçado
líquido,
riscado de Sol:
(é
lindo, Portugal!,
o meu bracejo de sol,
de mar a mar, este,
o meu,
Siarah Grande, terra minha,
este mar
à manhã nascedoira,
aqui).
Aí, Portugal, em tuas
terras moiras,
o Sol nasce de dentro dos
montes e se apaga
dentro das águas;
aqui, ele se rasga aos céus,
de dentro do mar,
surgindo.
Nesta manhã de rubros,
rastejo a manhã
e de joelhos,
as conchas do mar me informam:
o Minho, o Douro, la plaza, os toiros
estão em ângulo
de grau,
à frente e à
esquerda estão;
é longe, sim, Hiberia
— recuerdos:
— Navigate, Hiberia!
— Navigamus.
O mar é longo.
Longas as águas verdes,
longos os olhos verdes às
barrancas do meu rio:
a ti, Antônia,
que diferença houvera de fazer
me nascesse o Sol
à esquerda ou à direita
se, bem dentro dos teus
olhos, só
o desterro da noite?
Esta a minha Tróia, agora:
este mar de sol, Siarah,
onde
touro e mameluco navego
o dia;
branco e mouro a noite navego;
negro e cinza enfrento
a tragédia e a aurora:
tanto faz, a tragédia, a aurora — tanto faz:
Exmo. Sr. Antônio,
dito Conselheiro,
dito Antônio dos Mares,
venho-lhe pedir que inscreva
a Francisco
no livro dos que não
crêem
na noite.
E tu, Calíope, permite
que no rol,
uma lista exígua,
continuem os nomes —
[aqueles nomes, sempre
serão poucos, crê!]:
porque os homens caem direto
dos homens;
direto dos deuses
alguns poucos homens
caem;
levanta-se uma raça
de homens;
levanta-se uma raça
de deuses.
Ignacio y Pizarro,
«Ite, Incendiate!».
y Cortés
y El Cordobés,
«Canudos não
se rendeu».
y Moscardó
y El Consejero,
«Tudo cierto en
Alcázar,
mi General!».
O touro,
o louco,
o mar absoluto:
«Mi general,
le entrego el Alcázar destruído, pero
el honor queda
intacto».
Sabedores da morte, sabedores
do criar,
despregados da verdade,
eles da morte sabem, da
morte destemem.
Sim, meu caro Pilatos, eles
sabem,
eles descreem, mera tarefa
de mais crer:
«Canudos não se rendeu».
Bêbados, senhor
Procurador,
completamente bêbados,
meu caro Pilatos,
(hemos de saber, sabemos),
porque eles sabem
a Verdade de que tanto
inquiriste
inutilmente:
aos escombros
o touro,
o santo,
o louco,
o mártir,
o herói,
o bandido:
Canudos não
se rendeu.
Exemplo único em
toda a História,
resistiu até o esgotamento
completo.
Expugnado palmo a palmo,
na precisão integral
do termo,
caiu
no dia 5, ao entardecer,
quando caíram
seus últimos
defensores, que todos morreram.
Eram apenas quatro:
um velho, dous homens feitos
e uma
criança,
na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados.
Destes lugares, muitos:
mouro, touro, mameluco,
franceses,
holandas, chegados, idos,
fugidos,
voltados às terras
índias, e fui ficando,
Siarah,
Siarah Grande, pisando venho
estes caminhos ásperos
—
filho de Anísia
e de Francisco, no Ipu fui nascido
[...]
em prol da tragédia...,
— de que me acodem, úteis,
as tragédias? —
se
desta barranca,
as águas escassas
só me refletem o
entardecer da tua voz?
José Moscardó
Ituarte, apud Toledo:
Toledo escombros, o filho
fuzilado:
Toledo, este livro,
Toledo história:
«Tudo cierto
en Alcázar, mi General!»
Eles berram, berramos
sob a Verdade absoluta:
este grito jugular —
¡Arrrrrrrriba España!
Amar, nascer, nem tanto
mais;
à montanha,
o mirro grão de ouro
há de ecoar
nos escombros da noite o
grito da noite:
gente
que não teme
a noite.
Calendários? Não
temos o costume.
Atira, forasteiro,
as alpercatas ao pé
da porta;
vais penetrar num templo
de auroras,
porque só os deuses
sabem da Aurora,
porque os sabedores da Aurora
tangem, no pulso certeiro,
entre mão e olho, a força do crear;
porque deles a certeza da
morte
certa, da certeza retiram
todas as setas da audácia:
Os que criam são
puros.
Os que imitam, escravos.
Era uma manhã de beira
de cais,
desabaram uma montanha de
pedras,
e aquele monte de pedras
soltas
acompanhava o chaos de Deus
—
pedr’alguma era igual.
E ali, diziam que iriam levantar
um paredão a uma
cidade-lá-em-cima.
E as pedras soltas,
uma e outra se encaixavam,
porque uma mão tomando
cada qual de qual,
pedra e mão nascidas
uma da outra,
assim os deuses! —
sob o olho artífice:
Nesta junta,
neste
calo,
nesta
cal,
aqui,
ali,
nesta
frincha,
assim,
esta,
mais
esta,
agora
aquela,
lá.
Vejam!
A
muralha,
o
caminho!
A
viagem!
E
minha vista de Coronel de vista larga
se destaca num negro jovem; mesmo cautivo
trazia ele no gesto o gesto;
à eloqüência de sua mão de pedra
a pedra se entregava —
ao logaritmo, à curva e à senóide,
que as parábolas na mente do negro,
em cima daquela montanha de pedras,
pedregulhos e a montanha desmanchada,
bastava um olhar — o mar profundo —
porque ao olho do criar a força do crear;
à dúvida do crear, à certeza do matar,
porque esta, certa, apenas esta:
a certeza de morrer — ...ninguém acredita.
No mesmo instante comprei o moleque.
E mandei batizá-lo na fé de Cristo
e disse:
Negro, teu nome a partir de hoje é Salomão,
da casa deste teu Coronel e de tua madrinha,
porque os meus braços e os meus olhos serão
poupados para o Século Cem,
de Ésquilo.
E os teus braços e os teus olhos, Salomão,
serão os meus
braços e os meus olhos em terras longas,
e a tua palavra será a minha,
honrada,
palavra de Coronel!
— Vai!
E mandei abastecer um veleiro,
porque dali os negros longínquos,
naquela mão do crear,
no olho do medir, seriam a escolha certa,
a Escolha do Capitão!,
mercadoria de qualidade, a Feitoria do Coronel!
“E me traze, Salomão,
negra nova, que seja de riso,
ainda que de seus olhos navegue um mar profundo;
que tenha alma grande; que grandes e roliças
também as pernas;
não me tragas gente seca nem mal-encarada,
que tu já sabes das medidas do meu cabedal,
da fartura da minha casa,
da tirania da minha unha:
— Vai, negro!
E
da minha crônica negreira botei velas e velo,
neste mar bravio as minhas bandeiras velo,
algumas perdidas, de lucros vastos porém —
sob uma marca registrada se fundou,
para as delícias, às algibeiras deste Coronel,
uma marca se fundou de Comércio & Indústria:
Os Negros do Capitão, as Negras de Chã®
As Escolhidas do Capitão, as Amadas do Coronel®
E delas, Carla; e
delas, Sandra;
e delas,
Marga; e delas, todas,
porque no
olhar, porque muito mais.
Salomão Capitão jamais me enganou;
queixas só tenho dos três moleques:
o que aleijava, o que tossia, o que bailava,
porque Salomão, de uma raça de deuses,
um único dia se enganou.
— Eles também se enganam, Coronel —
dizia-me Salomão.
(Porque deuses e demônios:
Moscardó, Hernán y
Pizarro, Ygnácio y
Quijote y los toreros,
él toro y las plazas y
Don António, el
Mendes Maciel, Concejero y
el profesor sin bracios y
Francisco
gente que não teme a
noite
gente da mesma parelha,
deuses —
deuses e demônios, à mesma laia).
Sim, Calíope, não te esqueças, hei de pedir
às outras oito a coragem... de fugir.
— Fugir, senhora musa?
Elas dirão que não!
Clio à frente, troando História,
Clio atrás, apalpando história;
porque entre enlevo e ódio,
Urânia numa noite me dissera:
A onda é alta, Coronel, mirai os céus.
— Vai, negro, o veleiro é teu!
(Fumo, aguardente, panos;
o azougue, o jugo, o jogo, e a ferros-gentes,
e todo o ódio
e as nossas almas —
pracejamos).
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