Fernando Monteiro
Uma voz que vem do Sul
(In Suplemento Rascunho, edição de
julho de 2001)
Sabemos, todos, que
poesia brasileira não anda bem — ou, pelo menos, que ela vive uma
“crise”, um impasse qualquer em torno do qual alguns diagnósticos se
transformam em visões parciais ou de adivinhação (mais do que de
decifração), divergentes e esquizofrênicas.
É uma situação que se
prolonga desde o pós-Geração 45 (com a falsa ruptura que ela não fez
— nem pretendeu fazer). Os anos 60 trouxeram — ou forçaram — o
inevitável engajamento político (do qual emergiu um verdadeiro poeta
como Ferreira Gullar), mas, à parte um ou outro nome, viemos a
desembocar não mais do que nas invenções carioca-paulistanas dos
concretistas dos anos 60, seguidos pela baixa inspiração e mínima
densidade da chamada “geração mimeógrafo” — uma década depois — e,
do saco de gatos dos anos oitenta, viemos a cair no vexame das
invenções “pantaneiras” de um Manoel de Barros tomadas como invenção
poética (aplaudo a coragem de José Nêumanne Pinto, nos Cem Melhores
Poemas do Século que não quis dar entrada à prosa disfarçada do
falso Rosa do verso), assim como a falsa transcendência, à la Adélia
Prado, também se viu guindada ao panteão de honra da hora vazia
(quando se procura alta poesia e só se encontra soluções domésticas
etc.).
Sabemos que a lírica
brasileira se entronca em tradições bem mais altas — desde a obra
tantalizadora do encouraçado João Cabral (principalmente para os
poetas do “país basco” que é o Nordeste) até aquela lacuna onde não
conseguimos pôr nada, isto é, o lugar onde esteve Jorge de Lima e a
sua tentativa de cosmovisão (Invenção de Orfeu) comovedora.
De ouvidos moucos para
a música maior, deveríamos ter comprado algum aparelho capaz de nos
manter mais perto da poesia de Emílio Moura do que daquela do seu
conterrâneo, Carlos Drummond de Andrade (parabenizo Almir de Freitas
e Reynaldo Azevedo por terem ousado afrontar, na BRAVO!, esse vício
que se tornou a admiração por Carlos) e, na falta disso, o resultado
é, hoje, de certo modo elefantíase e insignificância —
respectivamente dos poetas mais velhos que perdem estatura e das
novas gerações que não alcançam voar acima de banalidades. Pode ser
que esta minha arenga já esteja enfurecendo algum ouvido sensível —
naquele bolso onde dói (mais) a vaidade —, mas a verdade é que a
poesia que produzimos atualmente é, em geral, descartável, pobre de
visão e formalmente medíocre.
Ansiamos, todos, por um
genuíno acento humano perdido, por uma dicção capaz de conciliar
grandeza com fragilidade, em nova música composta do fragmento e da
visão do todo que ainda é possível ver (na poesia onde se busca
precisamente isso... pois não é na prosa — sabemos — que se
retempera o aço da raça, a antena, o sonar da tribo).
Pois estou eu posto
nesse (desa)sossego — como uma Inês avoenga de mim mesmo — metido
nos “abstratos furores” do personagem daquele poema em prosa que é
Conversazione in Sicilia, quando eis que me cai nas mãos uma bela
obra brasileiro-mediterrânea, um poema longo do jovem poeta gaúcho
Fabrício Carpinejar, 28 anos: Um Terno de Pássaros ao Sul,
publicado, ano passado, pela Escrituras Editora (http://www.escrituras.com.br).
É o segundo livro de
Carpinejar (o primeiro foi As Solas do Sol, de 1998, editado pela
Bertrand Brasil), e vem com aquele sereno ímpeto — oposto dos
furores abstratos ou não — pelo qual a poesia brasileira vinha
rogando aos novos poetas sem emoção. Fabrício Carpinejar se mostra o
oposto dessa emocionalidade em branco que ameaça “matar” a nossa
lírica menos pela pressa do que pela descompressão — demasiadamente
solta e “insubstancial” como ela se encontra, entre os Armando
Freitas e os Cacaso. Longe do Rio e de São Paulo (e herdeiro —
literalmente — de Maria Carpi e Carlos Nejar), Carpinejar trabalha
com as visões de dentro e ao mesmo tempo consegue ser de uma
visceralidade gaúcha por inteiro, no Terno, ao estruturar o poema em
torno de uma conclamação ao pai, ao pampa, ao Deus desconhecido
enfim, por todas as formas de retorno como redenção (e remissão).
Volta ao pampa, pai é o
refrão interno “das estrofes de três versos, multimétricos”
(conforme os identifica Ivo Barroso), que nos conduz em descida para
o centro da terra do poeta: Quando vagaste/em meia-idade/pela selva
escura, fiquei/alimentando o aquário./Pedia privacidade às
traças./Vestia tua camisa/copiando o ritmo dos teus traços,/a
respiração copiosa,/sendo meu próprio/e definitivo pai.
A viagem do poema é
daquela variedade “grega” — embora no pampa — dos périplos à volta
do umbigo do mundo, do ônfalo da Região e do armário onde se
escondem a origem e o destino: Sou o familiar/que estranha as
vivencias./Sou o filho do teu ruído,/os ombros doendo (...)Tantas
vezes caí/em teu lugar,/que descobri o inferno/ao repetir a
salvação./Tantas vezes caíste/em meu lugar,/que descobriste a
salvação/ao repetir o inferno. Volta ao pampa... — diz o filho poeta
ao pai estranhado pela vida, num monologar que conversa lentamente:
com o Outro, com a poesia e consigo mesmo.
Por tais menções (e
situações), já se vê que Fabrício Carpinejar nos traz de volta às
visitações dos campos e das ilhas da imaginação, assim como às
investigações, antigas, da esfera armilar e da lâmpada de argila do
Orfeu de Jorge de Lima — a luz de sempre em tempos do apagão poético
já instalado na nossa lírica.
Um Terno de Pássaros ao
Sul é um livro que, em certos momentos, também conecta com o
extra-pampa do solene La Casa Encendida, de Luis Rosales, na medida
em que levanta vôo rumo a um Sul que, afinal, se revela o próprio
norte perdido dos poemas: cada jovem cantor da banalidade pode tomar
como exemplo essa sinceridade que se investiga, esse cantochão de
acento gauchesco que nos convida a penetrar no ovo sem portas, no
Ônfalo da terra.
No prefácio, é
lembrado, muito oportunamente, que “o poema longo sempre foi um
desafio para todo poeta que não se conforma com o vôo baixo dos
sonetos ou a sístole taquicárdica dos haicais” — e esse é outro
aspecto pelo qual devemos saudar o aparecimento do livro de
Carpinejar. Nisso, estaremos secundando os italianos (já que o
Brasil sempre precisa dos outros — para se perceber a si mesmo),
pois Fabrício acaba de obter o 3o lugar no Prêmio Literário
Internacional “Maestrale — San Marco” 2001, ou seja, o prestigioso
MARENGO D’ORO, da Itália. Nosso poeta foi o único brasileiro
selecionado, concorrendo na categoria de obra em língua estrangeira,
juntamente com participantes nos idiomas francês, inglês e espanhol,
além da língua portuguesa (África e Portugal). E o prêmio foi
justamente para um fragmento de Um Terno de Pássaros ao Sul vertido
para o italiano pela tradutora paranaense Cassiana Toazza Caldeira,
sob o título Nessuna Ferito.
É bem o tempo,
portanto, de se prestar atenção nessa nova voz que soa forte, vinda
do Sul, e já alcança os longes dourados de Gênova.
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