Francisco Carvalho
Os livros e os livrinhos
12/09/2004
Virgílio Maia, poeta
de qualidade, divide o seu tempo entre os misteres da advocacia e os
mistérios da poesia. Apaixonado pela magia das tradições ibéricas e
pela densidade cabalística das primitivas escrituras judaicas, ele
as aproveita, com absoluta pertinência para diversificar e
enriquecer a artesania de seus poemas.
Timbre, seu mais
recente livro de poemas, nos traz de volta o poeta dos brasões
nordestinos e das sextilhas incandescentes, também chamadas de
martelo-gabinete, que servem de moldura sonora aos Estandartes das
Tribos de Israel, conjunto de doze gravuras executadas pelo talento
de Côca Torquato. O poeta está de volta com a mesma força do seu
lirismo épico (relevem-me o paradoxo), a mesma destreza na
elaboração de suas construções temáticas, nas quais consegue uma
fusão extraordinariamente bem-sucedida do erudito e do popular.
Ao ler os poemas de
Timbre, o leitor atento vai esbarrar em palavrs cujos significados
os léxicos geralmente não registram. Algumas delas para
exemplificar: larache, pistache, arreata, surata, golem, alviblau,
morabitinos, vilejos, lapizãs e várias outras não menos curiosas.
Mas esse fato não deve desencorajar o leitor nem levá-lo a supor que
Virgílio Maia é algum colecionador de vocábulos de sonoridades
exóticas, estranhos à índole do nosso idioma. Diga-se, de passagem,
que tais vocábulos não comprometem a funcionalidade dos contextos em
que se acham integrados.
No belo poema “Sesmeiro”,
em que o autor celebra as peripécias de alguns expoentes de sua
ancestralidade, o lírico e o épico se confundem (o que de resto
acontece na maior parte do livro). “E o bronze do seu sino
propagava/ intermináveis ecos da fé/ no verão da paisagem desolada”
(p. 16). Logo adiante, na p. 17, este discurso viril de um autêntico
desbravador de caminhos: “Tanger, tangi boiadas incontáveis/ através
das caatingas que estremavam/ ao Ocidente com sete-estrelo/ ou
nessas terras chãs dos tabuleiros/ e épsilon de Escorpião traçava o
rumo”.
A poesia de Timbre é
um mergulho nas origens da infância do poeta. Das profundezas da
memória ele vai buscar as sombras patriarcais de Manoel Fidélis da
Costa, seu trisavô; Francisco Bento de Assis Maia, seu bisavô;
Antônio Lopes da Costa Maia, seu avô e Napoleão Nunes Maia, seu pai.
“Quem no chão desta caatinga/ devagar o ouvido encosta/ escuta fatos
de outrora/ sob um sol que tudo tosta/ e, lá bem longe, um lamento,/
que vai aboiando ao vento/ Manoel Fidélis Costa” (p.21).
Em “Rudes Brasões”,
a evocação do avô, Antônio Lopes da Costa Maia: “Meu avô imprimiu no
couro vivo/ de um boi brabo seu rústico brasão”... (p. 24). Falar em
boi induz a pensar em cavalo, e cavalo fogoso, dizem que o será
ainda mais à causa de esporas. Daí que “Do sertão mais profundo, em
disparada,/ um vaqueiro me trouxe esta comenda:/ par de esporas
antigas, sem emendas,/ que um ourives na pura prata” (p.25).
Há nesse livro uma
evidente impregnação do lirismo trovadoresco de origens ibéricas.
Poemas como “Messejana, Portugal”, ´Gleba´, “Navegações”, “Soneto
das Alegrias das Águas”, “Romancim do Vento de Domingo”, para citar
apenas esses exemplos, constituem prova cabal do que acima foi
referido. Que o digam estes versos: “A quatro léguas de Ourique,/ o
Concelho de Aljustrel,/ tem cinco espadas de prata/ rebrilhando sob
o céu” (p. 37); “Alentejo-mar de trigo/ com silêncios de romãs./ Sem
jeito trago comigo/ a cor de suas manhãs” (p.38); “Espadim era,
então, o verso ibérico,/ arte maior, galega gaita e forte” (p.39);
“Os cristais são do Tejo, vêm da Espanha,/ da moura sisudez de
Albarracín” (p. 51): [...] “Nordeste e Portugal num mesmo rol,/ no
remanso alviblau de um chafariz” (idem).
Não é por acaso que
o poeta coloca o “Nordeste e Portugal num mesmo rol”. Também não é
por acaso que o relógio da torre da igreja de Messejana é comparado
a “guerreiros corações/ dos tempos d´El Rey Dom Sancho”. Também não
é por acaso que o primeiro verso do último terceto do soneto da
página 52 começa com este decassílabo de indiscutíveis
reminiscências camonianas: “E paira sobre nós a gente antiga”. É
justamente o sopro tutelar dessa “gente antiga” que alimenta as
vertentes épicas dos poemas de Virgílio Maia. Sem que isso
signifique dizer que esse fato lhes compromete a justa ambição de
modernidade.
Nas páginas de
Timbre, trabalhadas com requintes de alquimista, desfilam
trovadores, menestréis, seresteiros, cantadores e repentistas
nordestinos. Os redondilhos de sonoridade medieval contracenam com
decassílabos heróicos. Os mesmos decassílabos utilizados pelo
Provedor de Defuntos e Ausentes para celebrar o heroísmo dos varões
lusitanos “em quem poder algum não teve a morte”.
Não desejo concluir
estas breves anotações sem advertir o leitor para a excelente
qualidade dos vinte e oito sonetos de que se compõe a segunda parte
do livro: Apud. Trata-se de textos de alto nível literário, escritos
com aguda consciência de quem sabe que a poesia, independentemente
de cânones e arquétipos, é uma conquista dos valores intrínsecos e
estéticos da linguagem. O soneto da página 72 nos parece exemplar:
“Primeiro, a duna, ao longe, faz corcova/ de imenso dromedário que
ali dorme/ a pastora, feroz, deserto enorme/ mais sonhos de azulejo
e lua nova”.
Na segunda parte do
seu livro, Virgílio Maia transcreve esta frase do filósofo
Terenciano Mauro: “Habent sua fata libelli” (Os livrinhos têm o seu
destino). Se é justo que os livrinhos tenham o seu destino, com mais
razão é lícito esperar que os livros de verdade (é o caso de Timbre)
tenham destino ainda mais promissor.
Francisco Carvalho
Da Academia Cearense de Letras
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