Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 


Ao cair da tarde



 

"O seu livro, caro Luís, tem a realidade bem observada e a observação bem exprimida — as duas qualidades supremas, as que se devem procurar antes de tudo na obra de Arte"... (Eça de Queirós. Notas Contemporâneas, p. 160). Essas palavras, dirigidas a contemporâneo do autor de Os Maias, poderiam ser ditas a respeito do livro AO CAIR DA TARDE, publicado recentemente pelo jornalista e escritor Lustosa da Costa (ABC Editora, 2005, 150 p.).

No prefácio do livro, L. da Costa cita frase do escritor português José Leon Machado: "Nunca foi minha ambição construir catedrais que desafiem o tempo". Se fizermos uma reflexão, ainda que superficial, sobre o sentido metafórico da aludida frase, chegaremos à conclusão de que os construtores de catedrais não são tão numerosos na literatura ocidental. De modo que isso serve de algum consolo para os construtores que têm problemas de síndrome das alturas.

Ao Cair da Tarde reúne textos de memórias e crônicas de viagens, observações quase sempre divertidas sobre pessoas, coisas, objetos, acontecimentos, como também acerca das idiossincrasias e comportamentos dos protagonistas da vida real. As páginas sobre a megalópole parisiense, os museus, os teatros, as igrejas, a diversidade arquitetônica, os redutos do amor, os bares, os cafés, os restaurantes, os bulevares, as praças e seus jardins trescalantes, as ruas da boêmia e dos bêbados, dos artistas e dos poetas; os lugares onde se discute filosofia, sexo e as últimas novidades do universo pornográfico ¬— quem não gostaria de passear o esqueleto nessas avenidas fulgurantes da Cidade-Luz, onde até mesmo o pecado é visto como a mais inocente das travessuras humanas?

A irreverência e o senso de humor são virtudes capitais da escritura de Lustosa da Costa. "Enquanto muitos contemporâneos andam por aí cavalgando suas Mercedes, ando pensando em comprar uma bicicleta" (p.100). Se em lugar da bicicleta, tivesse dito que andava pensando em comprar motocicleta, não teria obviamente a mesma graça ensejada pelo cotejo entre a Mercedes e a bicicleta. O sempre atual Barão de Itararé afirma que "Os paralelos são sempre deprimentes. Do cotejo resulta sempre que um pesa mais do que o outro" (Máximas e Mínimas, p.23).

Flagrantes antológicos são captados pelo viajante em suas andanças pelo vasto mundo. Ele o faz com a sensualidade de quem descobrisse o planeta pela primeira vez. É o caso, por exemplo, do pintor espanhol, contratado em Paris para fazer o retrato do autor. Ao receber a pintura, "olhei e me achei meio lânguido, algo desmunhecado. Em tom de brincadeira", protesta contra a aparência do retrato, que lhe parecia o de um "maricon" (homossexual em espanhol). O jovem pintor não perdeu o rebolado e respondeu no ato: "Não tiengo culpa".

Passagem digna de nota é a que se refere a uma frase de Olavo Bilac, "o grande poeta que não gostava de ser brasileiro e se proclamava parisiense exilado nos trópicos" (p. 94). Para o autor de Profissão de Fé, "Machado de Assis não era negro, era grego". Não deixa de ser surpreendente essa revelação de que "o poeta não gostava de ser brasileiro". Principalmente quando manifesta sua aversão à raça negra na alusão deselegante à negritude de Machado de Assis. Dizer que Machado de Assis "não era negro, era grego" simplesmente coloca o autor de Dom Casmurro numa situação bastante incômoda. Algo como se alguém pretendesse esconder as ataduras de uma fratura exposta.

Ainda comete insanável contradição, quando se sabe que em determinada fase de sua vida escreveu poemas ufanistas de louvor ao Brasil, "onde o sentimento nativista era exaltado com ardor" (Celso Pedro Luft. Manual de Português, p. 590). Não esquecer que Olavo Bilac é autor do Hino à Bandeira e de várias canções de exaltação às belezas naturais da Pátria. "Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/ Criança, não verás país nenhum como este!". Quem não se recorda de ter lido estes versos em compêndios de saudosa memória, destinados ao ensino de 1º grau?

Quem já leu alguns livros de L. da Costa não terá deixado de observar que o escritor cearense tem prodigiosa aptidão para os jogos epigramáticos, no que revela indiscutíveis pendores que o aproximam da sensualidade estilística de Eça de Queirós. Suas narrativas sobre Paris e seu povo, as peculiaridades dos franceses e sua proverbial ojeriza a turistas estrangeiros; as observações pertinentes acerca de países que visitou; o entusiasmo com que fala das belezas e seduções da metrópole onde nasceram e viveram celebridades das letras e das artes — tudo isso e a exatidão das tintas com que desenha suas impressões dão ao leitor a sensação de uma realidade palpitante, que lhe acaricia os sentidos fatigados pela mesmice das rotinas tribais.

Algumas das páginas mais fascinantes do livro estão entre as dedicadas à cidade de Praga, onde Kafka escreveu O Processo, no qual relata suas visões aterradoras a respeito do absurdo da existência. Diga-se, de passagem, que a metamorfose de um de seus personagens numa repugnante barata não passa hoje de inocente fantasia de poeta, se comparada aos horrores protagonizados por déspotas e genocidas dos tempos modernos, verdadeiras oficinas de fabricar neuroses e pesadelos. Lustosa da Costa possui uma virtude capital: não faz reverências a solenidades barrocas. Até mesmo quando faz história em suas crônicas, sempre acha um jeito de expulsar os demônios da imponência verbal, como neste passo de sua visita ao domicílio de Kafka: "Estive na casa de Kafka e não encontrei Gregor Samsa nem a barata. Pra ser exato, vi foi uma mosca. Solitária mosca checa, sobrevivente ao centralismo democrático, à revolução dos veludos, à restauração da democracia. Mandei falar desse inseto a um amigo e os filhos me crucificaram por isso" (p.126).

De tanto ler os relatos de Lustosa da Costa, a gente acaba ficando com inveja deste viajante que vai colecionando beleza e cultura em contacto com grandes metrópoles do planeta, onde se vive de acordo com altos padrões de civilidade e se raciocina de modo diverso daqueles que se amofinam sob os horizontes estreitos de seus redutos tribais. Permito-me revisitar a genialidade do Barão para não me frustrar de haver nascido ao sabor das singularidades dos trópicos. Fala o Barão: "A França teve um Mirabeau. Mas é no Brasil que se passam as coisas mais mirabolantes./ Em toda parte do mundo há homens ateus e mulheres atoas".

Na página 128 leio informação segundo a qual Otto Maria Carpeaux, o incomparável humanista com que o nazismo nos presenteou, também não gostava de Ulysses de Joyce, obra por ele considerada chata. À maneira do Lustosa, também me azucrinava "com a clamorosa deficiência", até saber que vários outros intelectuais pensavam de forma igual ao autor de As Cinzas do Purgatório. Também não gosto de outros livros de celebridades. Um deles é o intragável Macunaíma de Mário de Andrade, uma espécie de Alcorão dos paulistanos. Mas quem sou eu pra mexer neste vespeiro?

Quem ainda não leu as narrativas de Lustosa da Costa, que o faça na primeira oportunidade. Ele não é apenas um admirável cronista do cotidiano, com prodigiosa habilidade para descobrir pérolas no cinzeiro do cascalho. Seus escritos podem ser classificados como jornalismo literário, sem aquela erudição bolorenta que não nos deixa respirar. LC não tem papas na língua, diz o que lhe dá na telha, quando escreve sobre gente miúda ou celebridades coroadas. Intelectuais, estudantes, profissionais da palavra ou semeadores de idéias — todos têm muito o que aprender com este mestre do epigrama e da irreverência.
 

 




Visite a página de Lustosa da Costa

 

 

 


 

02/02/2006