Georgina Albuquerque
Bergman e os rituais de passagem
"Ingmar Bergman , na primeira cena
do “O sétimo selo”, introduz um personagem pálido como um cadáver,
vestindo um manto preto de amplas mangas e com as mãos ocultas sob
suas dobras. Do encontro deste personagem com uma cavaleiro resulta
o seguinte diálogo:
O Cavaleiro: -Quem é você ?
A Morte: -Eu sou a Morte.
O Cavaleiro: -Veio me procurar ?
A Morte: -Tenho caminhado a seu lado há muito tempo.
O Cavaleiro: -Eu sei.
A Morte: -Está pronto ?
O Cavaleiro: -Meu corpo tem medo. Eu não.
A Morte: -Bem, não tem de que se envergonhar (...).
O Cavaleiro: -Você joga xadrez, não ? (...) Eu vi nos quadros (...).
Você certamente não joga melhor do que eu ( e rapidamente dispõe
sobre as peças sobre um tabuleiro de xadrez). Minhas condições são
as seguintes: você me deixa vivo enquanto eu resistir a você. Se eu
conseguir um xeque- mate, você me poupa. De acordo ?
Ao interromperem a partida para
dar prosseguimento no dia seguinte, o cavaleiro vai a uma igreja se
confessar. Lá questiona o padre quanto à existência de Deus e quanto
ao sentido da vida, dizendo que a vida é um horror absurdo e que
ninguém pode viver com a morte diante de seus olhos e sabendo que
tudo é coisa nenhuma. Questiona-se também, quanto ao que fez de sua
vida, dizendo que seu coração está vazio e que, por ser indiferente
à humanidade, dela se afastou e se fechou num mundo de sonhos.
Revela ao confessor que a Morte veio visitá-lo naquela manhã e que o
prolongamento de sua vida lhe daria a oportunidade de realizar uma
missão urgente. O padre diz, então, que este é o motivo de ter
proposto uma partida de xadrez à Morte.
O cavaleiro, instigado pela
observação do padre e animado com o desenrolar da partida, diz que
seu adversário é temível, mas que ele ainda não perdeu nenhuma peça
e revela a tática com que pretende prosseguir a partida a derrotar a
Morte. O padre responde:
O Padre: -Eu me lembrarei disto. ( E mostra
seu rosto ao cavaleiro por um instante. É a própria Morte.)
O Cavaleiro: -Você é um traidor! Mas nos reencontraremos. E eu
acharei uma saída (...). Eis aqui minha mão. Eu posso movê-la, meu
sangue corre em minhas veias. O Sol ainda está alto e eu, Antonius
Block , jogo xadrez com a Morte."
(Sérgio Zaidhaft . Morte e formação médica.
Francisco Alves Editora,1990 )
*Diálogo entre a Morte e o Cavaleiro traduzido de "Le septième sceau"
– roteiro do filme realizado em 1956 . Ingmar Bergman , Oeuvres ,
Paris, Robert Laffont .
Enquanto lia sobre os rituais de
passagem, pude observar a grande correlação entre os mesmos e o jogo
de xadrez do filme de Bergman . Do esforço da busca do primeiro
emprego à perda significativa, as situações novas que se apresentam
equivalem-se a uma grande disputa. Através desta, opta-se pela
manutenção da vida, após a consciência de uma realidade que até
então se desconhecia ou apenas era vislumbrada como algo distante .A
Morte afirma que vinha ao lado do Cavaleiro há muito tempo, mas isso
só passou a tornar-se uma grande aflição a partir da sua iminência.
Certa vez assisti a uma entrevista
concedida por Cristiane Torloni , na qual ela mencionava sua ida
para Portugal após a perda de seu filho, vítima de acidente. Segundo
ela, estava sendo impossível vivenciar por aqui a sua dor, visto que
os rituais de passagem estão cada vez mais coibidos. Com o intuito
de auxiliar, as pessoas proferiam frases como: –“Você tem que se
ajudar! ...Não adianta ficar em casa, vamos sair um pouco!...Faça um
esforço!..." etc. E a atriz considerava impossível que a perda de
alguém tão significativo não pudesse ser vivida, com tudo aquilo que
ela viesse a representar.
A verdade é que a nossa sociedade
não tem permitido a existência de uma maior densidade interior, em
nome de uma crescente e valorizada postura de extroversão. Não se
consegue perceber que as partidas de xadrez são vitais, ou seja, que
o debruçar-se sobre um tabuleiro cujo fundo represente alguma
transição fronteiriça é algo fundamental. Muitas vezes os
adversários somos nós mesmos, querendo eliminar , através de algum
contra-desejo, nossa ânsia de vida. Como o falso padre, ainda que
conhecedores de nossos desejos e propósitos mais íntimos, nos
boicotamos. E isso Freud explica muito bem! Mas fica para uma outra
partida...
|