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Georgina Albuquerque 

mgalbuquerque@ig.com.br

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia :


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Alguma notícia da autora:

 

Maria Georgina Albuquerque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Inocência, foto de Marcus Prado

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

Georgina Albuquerque



A CHEGADA


A estrada pertence ao homem que a ilumina
e busca dar certeza
aos passos que exercita afoito.
É também da mulher que aguarda dar à luz,
suor brotando meio ao sangue,
o seio pesado e entumescido
premiando a vitória do parir.


Cordões rompidos preservam resquícios,
rastros de passado na terra úmida;
frutos cobiçados, maturação alcançada,
choro irrompendo uma membrana fina.
Ainda que os mortos-vivos se levantem,
e cantem pela manhã os pássaros indiferentes,
o mundo é dos obstinados que se entregam,
e pensam que carregam o necessário dentro de si.


A chegada, porém, pertence ao homem corajoso,
aquele que despreza o tempo no afago à sua amada;
à mãe que sorri, indolente, noite enluarada,
e conta sempre ao filho coisas engraçadas.
Não precisa dormir, nem dar à luz, nem nada,
tampouco encenar uma vida agitada.
O final da rota é apenas o início,
um útero macio que comporta, aquecido,
a calma experiência de um viver fugaz.

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Lilian Mail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

Georgina Albuquerque


 

APRENDIZ


Sou guardião dos dias
em que se mascava o fumo da algibeira,
e o tecido escorria pelas mãos das tecelãs.
Comia, faminto, a maçaroca dos tachos,
recontava, aflito, o rebanho nos pastos,
percebia a prenha, o piolho e a inanição.


Aprendiz de um tempo novo,
persigo ruas e luas
(nuas!...)
E nunca entendo a vida,
enquanto versus morte,
pretendo ir ao sul e quando atinjo é norte,
se dou início, encontro-me no fim.
O aconchego que agasalha a alma:
onde o sono tranqüilo,
a vastidão que acalma,
e o céu pintado, azul-anil?


Aprendiz de um tempo novo,
nem tudo que escutei eu realmente ouvi
pra onde olhei, muito pouco eu vi.
Parece que retenho o que persigo em mim...
os passos que aguardo,
as sombras de que necessito,
o som que me enternece,
enquanto a noite cresce
no futuro que há de vir.


Criança minha, que o destino há de parir,
aguardo a virada dos dias,
prometo acolhê-la e sorrir.
O novo está mais velho
e ainda assim sou aprendiz,
apesar de todo o tanto que já fiz !...

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Roberto Pires

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Georgina Albuquerque



HÓSTIAS


Posto que os dias são hóstias
e o cálice, a vida,
eu persigo um tempo maior
que percorra meu corpo
como água corrente.


Que o novo se apresente
e eu de mim me ausente!...


Visões diferentes,
asas de um pássaro
perverso e inocente,
venha o que ainda não vi
e sobre meus cabelos
insinue um véu.
 

   

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Ivo Barroso, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Georgina Albuquerque


 

MÁQUINA RANGENTE


O que é o futuro senão uma máquina rangente
a qual se propõe besuntar com o óleo da misericórdia?


-Deus salva, Deus guarda, Deus acolhe!


A incerteza de sobreviver ao pranto,
e até mesmo à ingênua alegria de um fim de tarde...


- O arco-íris, o assalto à mão-armada...


O que é o presente senão vislumbrar no espelho
um desconhecido daquele que ontem fui?


Hoje a pele inunda em rugas
e alastram-se, epidêmicas, as manchas senis.
O olhar, no entanto, pareceria o mesmo,
não fosse a imagem evitada e vista de soslaio.


Medo da inércia (ou será paz?)
que a ausência da paixão desperta.
O relógio não tem mais cuco ou badalo
A vida, esta sim, permanece implacável...


O que é o futuro senão esse tremor incontrolável
que lubrifico com suor noturno?


Acordo na madrugada e revejo os pesados armários da infância.
Não me importa onde eu esteja,
ali está o assustador paletó, cobrindo a cadeira.


Mas a manhã, ainda que demore, chega
e a máquina rangendo, forte e estúpida...
Necessito ser untado com óleo morno,
acariciado e acalentado por mãos finas e canto macio.


Que a misericórdia não me deixe só na noite...
Permita ainda uma medíocre luz acesa,
suficiente para afastar fantasmas.


Não me dê conta, suplico, ser eu mesmo
os seres que temo, assombrado.
O mofo da pele não dá mais pra atenuar,
nem sacudir o pó das entranhas.


Finalmente adormeço, abatido,
aos primeiros sopros da manhã...