Georgina Albuquerque
Santa Teresa e a questão dos anjos e
demônios
Por ocasião de uma entrevista com
Mário Quintana, o jornalista Hermes Rodrigues Nery formulou uma de
suas perguntas baseado na afirmação de que "Santa Teresa D'Ávila
alertou que deveríamos tomar cuidado ao tentarmos nos livrar de
nossos demônios para que não perdêssemos, junto com eles, os nossos
anjos...". O poeta ficou surpreso, achando interessante a colocação
da santa, para ele até então desconhecida.
A questão dos anjos e demônios,
representando o bem e o mal, poderia estar fortemente banalizada,
tantas as abordagens mitológicas ou religiosas existentes sobre o
assunto. Uma delas toma como alicerce a grande paixão de Lúcifer por
Deus, visto que a sua admiração por Ele atiçava-lhe um ciúme
incontrolável, levando-o a ansiar por exclusividade. Outra concepção
prega que Deus, sentindo-se muito só, criou um ser semelhante em
força, mas surpreendeu-se depois com o resultado. As ideologias
entre os dois haviam denunciado um contraste conflitante e Lúcifer
ficou deveras magoado, o sentimento de rejeição alimentando
sentimentos de vingança. Sentiu-se vítima da maldade do Criador, que
não retribuiu o seu amor intenso. Apesar de lindíssimo e
extremamente inteligente, o demônio carente amargava-se por saber
que Deus só não o destruía por tê-lo, inadvertidamente, dotado da
imortalidade.
De volta à Santa Teresa e
resumindo a sua preocupação, verificamos que o seu temor maior seria
relacionado à perda dos anjos particulares. E estabelece como
condição, para que tal não ocorra, a administração dos nossos
demônios submersos.
A questão existencial parece estar
centrada nesse convívio de forças e, por extensão, a social também.
O passado da religião católica, por exemplo, traçando metas
excessivamente angelicais para a condição humana dos católicos,
cometeu atos extremados de selvageria. Hitler , objetivando a pureza
racial, utilizou-se de artifícios diabólicos (as famílias
sobreviventes que o digam!), pregando uma réplica do espaço
celestial na terra, repleta de anjos loiros de olhos azuis.
A questão do bem e do mal sofre
múltiplas influências, inclusive antropológicas. A aldeia global, é
claro, leva a uma maior uniformização cultural, tentando, por
exemplo, abolir a extração do clitóris em tribos africanas.
As mulheres da região já oferecem muita resistência à prática, dada
a legitimidade e o respaldo que a cultura mundial dominante lhes
concede. O esvaziamento do sofrimento coletivo é como aquela
historinha infantil, na qual a criança aponta para o rei e diz em
alto e bom tom que ele está nu. Aqueles que se esforçam para
ostentar admiração pelo que não vêem, sentem-se imediatamente
aliviados com a súbita revelação.
Em Psicanálise, trabalha-se com o
conceito de ganho secundário. Segundo ela, tudo o que fazemos seria
resultante de uma estratégia particular ainda que inconsciente. Os
que praticam a bondade e desenvolvem a ética estariam a agir de
forma tão egocêntrica quanto os maldosos e invejosos, ambos
atendendo a sua própria subjetividade. Até aí tudo correto? Sim,
conceitualmente sim!... No entanto, tratando-se de seres humanos, um
fator prepondera sobre todos os outros, com um peso esmagador: - o
limite da dor!
Quando o sofrimento faz parte de
um contexto cultural enraizado, pode ser que a resistência
psicológica o minimize. Mas quando não, o mal fica claramente
explicitado. Estivéssemos nós na condição de judeus num campo de
concentração, nossa condição fragilizada fatalmente valorizaria os
conceitos éticos de bondade e eqüidade. Sem precisar ir tão longe,
teríamos o mesmo posicionamento caso nos encontrássemos abandonados
num hospital público ou atingidos por uma tristeza súbita decorrente
do desemprego. O bem e o mal estão , portanto, ligados a uma
situação limítrofe de sensibilidade. Ao contrário dos exercícios
conceituais, é aí que o contraste torna-se gritante e o antagonismo
facilmente reconhecido.
Como vemos, é tudo questão de
empatia ... A luta por determinados valores éticos não é,
definitivamente, uma questão de apatia ou de atitude romântica e
circunstancial. Ao contrário, é a percepção de que, sem a revisão
dos freios, podemos ferir desnecessariamente o outro, devido aos
nossos demônios internos. Lançá-los como explosivos, causando
desconforto e amargura aos demais, não aplaca as nossas
indisposições afetivas e existenciais.
Além disso, quanto à
brincadeira infantil de vislumbrar-se como a encarnação da maldade,
não podemos tomá-la como uma forma prática de viver. A energia é
dispersada inutilmente e o fato de o ser humano não contar com a
supremacia de Lúcifer pode transformá-lo num zumbi inexpressivo,
ausente nele o glamour do anjo ciumento e carente ao qual,
inicialmente, Deus propôs parceria.
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