Georgina Albuquerque
Uma reflexão sobre a obra de Mário
Quintana ( I )
A leitura dos livros de Mário
Quintana assemelha-se a uma conversa de fim de tarde, com direito a
cantos de cigarra e pássaros sobrevoando as árvores da calçada em
frente. Mais do que isso, sugere uma inteligente cumplicidade,
explicitada nas suas delicadas e argutas lições de vida.
"Não te abras com teu amigo
Que ele outro amigo tem
E o amigo de teu amigo
Possui amigos também".
(Espelho Mágico – 1948)
Vários jornais de Porto Alegre
foram beneficiados com a participação ativa do autor em seu quadro.
Excelente tradutor, trabalhou sobre as obras de Proust, Voltaire,
Balzac, Maupassant, Virginia Woolf, Charles Morgan, entre outros.
Após haver participado da Revolução de 1930, o gaúcho de Alegrete
mudou-se para o Rio de Janeiro. Por ocasião de seu retorno ao Rio
Grande do Sul trabalhou na Livraria do Globo, tendo Érico Veríssimo
como diretor. O seu primeiro livro de poesias, intitulado “A Rua dos
Cataventos”, data de 1940, quando contava com 36 anos de idade.
A poesia, para Quintana, possuía
um sentido vital, quase sagrado. Seguiria uma trajetória própria,
sem maiores pretensões agregadas. Daí seu engajamento num trabalho
coerente com o seu espírito criativo e argumentador. Em seu livro "A
vaca e o Hipografo" (1977), afirma: "Eu acho que todos deveriam
fazer versos. Ainda que saiam maus. É preferível para a alma humana
fazer maus versos, a não fazer nenhum. O exercício da arte poética é
sempre um esforço de superação e, assim, o refinamento do estilo
acaba trazendo a melhoria da alma”.
Quando lhe pediam que falasse
sobre sua vida, o poeta não disfarçava o seu desagrado: "Bem... eu
sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é
indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas sou eu
mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão".
"O poema
essa estranha máscara
mais verdadeira do que a própria face"
(80 Anos de Poesia, l986)
O interessante com relação à obra
de Quintana é a sua natureza múltipla. Apesar da postura crítica e
da ironia refinada, há uma ternura explícita coexistindo, assim como
uma envolvente honestidade conceitual.
"Se eu amo meu semelhante? Sim. Mas onde
encontrar meu semelhante?”
(Exame de Consciência - Caderno H /
l973)
As suas poesias, aparentemente
simples, trazem a complexidade de quem viveu intensamente o
sentimento de mundo. A vasta percepção possibilita uma engenharia
sólida no que toca à compreensão da natureza humana. Convicto com
relação a sua capacidade criadora, manteve-se distante dos modismos
literários, cultuando forte independência com relação a qualquer
tipo de classificação que viesse a rotulá-lo, ou à sua obra. Esse
individualismo creditou-lhe um orgulho persistente, haja vista a sua
autenticidade, instigando-lhe a dividir grandes lições de vida com o
leitor que vier a prestigiá-lo.
"Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita".
(80 Anos de Poesia, 1986)
"Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo..."
(Apontamentos de História
Sobrenatural, 1976)
"Olha o que aconteceu aos Grandes Impérios!
Por eles se vê que a mania de grandeza é sempre fatal.
E espia só os iguanodontes , esses pesadelos ridículos...
Se fossem do tamanho de lagartixas, existiriam até hoje."
(Do Gigantismo - A vaca e o Hipogrifo
/ 1977)
Estabelecer um percurso sobre a
obra do autor significa um exercício de contínua sensibilidade.
Ainda que inicie muitos de seus versos com uma fina ironia, a
densidade de suas questões não permite ocultar que fazer poesia é
refugiar-se do incômodo existencial e filosófico que sua extrema
sensibilidade insiste em sacudir.
"Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha..."
(80 Anos de Poesia, l986)
A postura encontrada diante da
compreensão da morte, da religião ou da existência divina não deixa
dúvidas quanto ao recurso da poesia como uma tentativa de
apaziguamento com a ausência de respostas de uns seres humano
intensos, comprometidos e intrigados com a grandeza da vida. Apesar
disso, ele luta bravamente para não se considerar diminuído por ela.
"Eu estava dormindo e acordaram-me
... e me encontrei num mundo incerto e louco!
Ms quando eu começava a compreendê-lo
um pouco, já eram horas de dormir de novo..."
(Nova Antologia Poética, 1966)
"O bicho,
Quando quer fugir dos outros,
Faz um buraco na terra.
O homem,
para fugir de si,
fez um buraco no céu "
(Nova Antologia Poética, 1966)
"Deus não está no céu. Deus está no fundo
do poço
onde o deixaram tombar.
- Caim, o que fizeste do teu Deus?
Suas unhas ensangüentadas arranham em vão as paredes escorregadias.
Deus está no inferno...
É preciso que lhe emprestemos todas as nossa forças
todo o nosso alento
para trazê-lo ao menos à face da terra.
E sentá-lo depois à nossa mesa
e dar-lhe do nosso pão e do nosso vinho.
E não deixar que de novo se perca.
Que de novo se perca... nem que seja no céu!"
(Nova Antologia Poética, l966)
"Sabes? Os cabelos da morte são
entrelaçados de flores".
(Nova Antologia Poética, 1966)
"A nossa vida nunca chega ao fim. É como se
alguém estivesse lendo um romance achasse o enredo enfadonho e,
interrompendo, com um beijo, a leitura, fechasse o livro e o
guardasse na estante. E deixasse o herói, os comparsas, as ações, os
gestos, tudo ali esperando, esperando... Como naquele jogo a que
chamavam brincar de estátua. Como um filme que parou de súbito”.
(A Vaca e Hipogrifo, l995)
Tarefas das mais cotidianas,
aparentes atos motores como a saída à rua ou a visão de uma
formiguinha cruzando o papel em branco, tornam-se grandes buscas,
diante da aguçada percepção subjetiva do poeta. É o que poderíamos
denominar como a Cor do Invisível, sugestivo título de um dos livros
do escritor.
"As mãos que dizem adeus são pássaros
Que vão morrendo lentamente..."
(A Cor do Invisível, 1989)
"Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em
branco. Mas ele, naquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por
ali já havia passado o frêmito e oi mistério da vida..."
(Nova Antologia Poética, 1966)
"Nada há mais triste do que o grito de um
trem no silêncio noturno. É a queixa de um estranho animal perdido,
único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre,
desesperado, noite em fora, como que para escapar à sua orfandade e
solidão de monstro “.
(Nova Antologia Poética, 1966)
"O doloroso sulco lábio-nasal junto à
garrafa morta..."
(A Cor do Invisível, l989)
" Escadas de caracol
Sempre
São misteriosas, conturbam...
Quando as desce, a gente
Se desparafusa...
Quando a gente as sobe
Se parafusa
-o peito
estreito-
o teto descendo
Descendo descendo como nas histórias de imortal horror!"
(Nova Antologia Poética, l966)
Obs. Existe no poema um pequeno recurso gráfico cuja reprodução
ficou impossibilitada.
* Todos os livros citados foram editados pela Editora
Globo.
Leia
a obra poética de Mário Quintana
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