Gerana Damulakis
De criatura à criadora
A
poesia escrita por mulheres através do tempos
De criatura à
criadora, a mulher percorreu um longo caminho de tributos e
punições. E no início eram Adão e Lilith, criados por Ele em
condições de igualdade até Lilith cometer o primeiro pecado - que
não foi a mordida na maçã - ao proferir o nome d'Ele. Expulsa do
paraíso graças aos seus excessos, afoiteza e galhardia, e sua
inquietações, Lilith passou a simbolizar a desventura. Adão ficou
só, mas não sustentou a solidão por muito tempo e rogou a Ele uma
outra mulher. Porém, dessa vez havia um custo a ser pago: uma parte
de seu corpo. É sintomático desde logo o que resolveu a questão: de
Adão não foi retirado nada dos olhos ou dos ouvidos, pois a mulher
não deve-ria ver ou ouvir melhor que ele; nada a tirar da cabeça, do
contrário, ele iria correr o risco de ter uma mulher que pensasse;
também nada havia para retirar de suas pernas para que ela não
corresse mais do que ele. Deus sugeriu, então, o osso curvo que
chamamos costela. É um osso que não faz falta, além de ter a
vantagem dessa curvatura que figura tão bem o sempre-curvado-a-ele.
A pequena
história conta, em síntese, o papel da mulher, o que lhe coube, e
daí vem a luta para reverter o conto e alcançar, ainda que na
contramão, o destemor de Lilith. E é na literatura escrita por
mulheres que se conta outra vez essa "fábula": no início foi Safo,
igual aos seus amigos poetas, ou mesmo mais ousada tal Lilith. Mais
adiante temos a hipótese levantada por Harold Bloom, que foi capaz
de propor uma polêmica quando no O Livro de J., dá ao misterioso J.
a autoria original de trechos como os da criação de Adão, Noé e o
dilúvio, José e seus irmãos e o episódio do Êxodo, do Velho
Testamento dos cristãos. J. teria sido uma mulher, uma escritora da
estatura de um Homero ou de um Shakespeare.
Mas, antes do
século XVIII, o que encontramos é uma outra voz feminina, seja Sor
Juana Inês de la Cruz, do México, ainda nos seiscentos, seja a fama
das Cartas de Amor de Mariana Alcoforado, escritas há três séculos
atrás.
O que se
encontra, na verdade, é a mulher se debatendo com uma linguagem
proibida. Emily Dickinson enfatiza o "sacrifício da mulher associado
à fala considerada ilegítima e à sexualidade considerada
subterrânea". Contudo, as Novas Cartas Portuguesas já comprovavam o
desassossego por originar uma linguagem aceitável para o gênero
feminino.
Voltando ao
princípio do século 18, as mulheres começaram a escrever e publicar
expressivamente tanto no continente europeu como nas Américas ainda
que o palavreado refletisse a índole feminina firmada na rainha do
lar. Apesar disso, a outra faceta virtualizava o mal e no instante
em que se dá a autoria, a mulher criadora revelada pula fora da vida
privada e, intrusa, faz da atividade cultural, que não lhe é
própria, passagem para a simbolização da bruxa malvada. Seguindo
essa trilha de condenação, a história e o hábito estéticos
determinam a dádiva ou a faculdade da criação artística como algo
especialmente masculino, o que não causa admiração, afinal é a
figura Paterna o criador, o determinador. Vê-se que pertence à
mulher o papel alegórico, diabólico ou celestial, enfim,
intercessora entre o criador, artista pois, e o mistério,
doutrinando-o para a perversão e/ou lançando-o ao estado de candura.
Em suma: musa. Essa posição diferenciada da mulher em relação ao
homem permanece até o século 20. Basta olhar os ideais cristãos da
Idade Média apartando o sexo, o gênero, dos demais valores
espirituais ou sociais, e, se depois a Inquisição rotula a mulher
como emissária do demônio, enviada com o intuito de tentar o homem,
então, resta olhar a Renascença, quando um "certo casamento" parece
mais harmonioso. Dando um salto direto para o Romantismo, vemos uma
elevação da emoção e dos sentimentos e, com isso, a mulher é
enaltecida para ser digna de contemplação. Estamos, outra vez, no
nosso século porque a conclusão fica a cargo das teorias
psicanalíticas e das pesquisas científicas, responsáveis pela
mudança relevante da visão humana de gênero, igualando os sexos e
seus poderes.
A literatura
acompanhou o desenrolar da luta dos gêneros: longe do tempo em que,
cercada de lendas amorosas que aumentavam sua fama, a poeta Safo
celebrizou os cantos de amor às suas ninfas, a autora obriga-se a
criar contra-dizendo o modelo nascido do protótipo através de
personagens representativas de sua contida, represada e acobertada
aspiração, de forma a conseguir arremessar os ímpetos
revolucionários e a energia do desespero em imagens excêntricas ou
entusiasmadas, desfiguradas ou patéticas. É como se o próprio ato de
escrever criasse o sujeito insano, "a figura da louca". Cecília
Meireles diz: "Sentada estava a Rainha,/ sentada em sua loucura./
Que sombras iam passando,/ naquela memória escura?".
O interessante
é que no fin-de-siècle dos oitocentos, está evidente a quantidade de
alterações nos temas e nas metáforas, remarcando, portanto, os
papéis sexuais devido à necessidade de uma determinação dos gêneros
e dado o pesar intrínseco na palavra "fim", de fim de século, e toda
a implicação que essa expressão carrega e produz como convulsão de
conceitos. Acontece a penetração feminina no mundo dos intelectuais,
levantando discursos e discussões: é o tempo da guerra dos sexos.
Aqui e ali, uma
Francisca Júlia (l874-1920) seguindo as diretrizes do Realismo, uma
Rosália de Castro (l837-1885), na Espanha, marcando seu nome com
eternas letras femininas na poesia. Não resta dúvida de que a prosa
foi mais fecunda: na ficção, desde 1678. Madame de Lafayette aparece
com La Princesse de Clèves, e Madame de Stãel (l766/1817), e mais
além Charlotte e Emily Brontê nos oitocentos, enquanto na
Inglaterra, Ann Radcliffe, por exemplo, torna-se a escritora mais
popular e mais bem paga no século 18, também Mary Shelley, já no
Romantismo, cria o mito eterno de Frankenstein. Mas, estamos mirando
especialmente a poesia e, para tanto, é indispensável olhar a poeta
romântica Emily Dickinson, americana que viveu de 1830 até 1886,
tendo uma corrente de sucessoras que testemunham sua importância.
A pesquisa
evidencia a fertilidade dos oitocentos, chegando à contemporaneidade
em todo o mundo com nomes como Elizabeth Barret Browning, nas-cida
em 1806, consagrada pelos seus Sonnets From.the Portuguese; sem
es-quecer Christina Rossetti, nascida em 1830, em Londres, irmã mais
moça de Dante Gabriel Rossetti. Na poesia norte-americana,
encontramos Hilda Doo-little, nomeada H.D., contemporânea de Pound e
William Carlos Williams, pregadora dos "imagistas 99 e da "ausência
de emoção", enquanto Marianne Moore perseguia a exatidão com tanto
radicalismo que ficou sendo rotulada de poeta cerebral e, de resto,
fez uma poesia das mais influentes na época com seus animais
chamados "antipoéticos", que serviam de isca para pegar o flagrante
da verdadeira poesia e, assim, Poetry, sua ars poética, consta de
toda antologia publicada em qualquer parte do mundo. Ainda, Edna St.
Vicent Millay, prêmio Pulitzer, em 1923, ou Elizabeth Bishop, que
nos é cara pois traduziu nossos poetas, por exemplo, Drummond. Sem
deixar de mencionar Anne Sexton, também prêmio Pulitzer, ombro a
ombro com Sylvia Plath devido a nota nova que ambas se preocuparam
em imprimir à poesia escrita por mulheres, de saída, diferente da
frieza de M. Moore, mostrando uma vontade firme de abrir espaços.
Anne Sexton, norte-americana, nascida em 1928, morreu
tragicamente,suicidando-se em 1974. o que sugere uma comparação com
a sorte de Sylvia Plath: vidas sofridas e encantos sublimes, as
mesmas inquietações, como em "Auge", de Plath: "A mulher está
perfeita./ Morto,/ Seu corpo mostra um sorriso de satisfação,/ A
ilusão de uma necessidade grega/ Flui pelas dobrasde sua toga,/ Nus,
seus pés/ Parecem dizer:/ Fomos tão longe, é o fim."
No Brasil,
Henriqueta Lisboa, vinda dos anos 30 deste século, amadurece junto
com o nosso Modernismo e Cecília Meireles desponta, em 45, com Mar
Absoluto. Ainda na nossa língua, Sophia de Mello Breyner Andersen,
em Portugal, é voz marcante sem se desfeminilizar. Em 1945, a poesia
e a mulher são premiadas com o Nobel de Literatura através da
chilena Gabriela Mistral por seu conjunto de obras, Croquis
Mexicanos, Desolación, Ternura, Tala. A poesia escrita por mulheres
é fato reconhecido, nomes imortais estimulam ensaios e estudos. João
Carlos Teixeira Gomes assinala no livro A Tempestade Engarrafada, a
convergência das poetas Alfonsina Storni e Florbela Espanca, baseada
na paixão e na agonia. O ensaísta diz: "o recalque atávico, de clara
conotação freudiana na sua expressão individual (...) denuncia as
pressões desencadeadas por vinte séculos da repressão sexual vinda
do bojo da concepção judaico-cristã do mundo, que ela [Storni]
repele, numa veraz e voraz celebração do impulso erótico e da força
dos instintos nos jogos amorosos": "Pudiera ser que todo lo que en
verso he sentido/ no fuera más que aquello que nunca pudo ser,/ no
fuera más que algo vedado e reprimido/ de familia en familia, de
mujer en mujer". Esta é Alfonsina Storni, naturalizada argentina,
colocando no modus faciendi da condição feminina a sensualidade sem
hipocrisia, tal como fez sua contemporânea Florbela Espanca. Ambas,
e isso lembra o outro para-lelo linhas acima entre Plath e Sexton, a
resistência quanto a uma rendição, ou seja, quanto ao desejo do
homem, daí o caminho da negação: "O amor dum homem? -Terra tão
pisada,/ Gota de chuva ao vento baloiçada ... Um homem? -Quando eu
sonho o amor dum Deus?...". Eu levantei uma semelhança,em 09/04/94
neste suplemento, entre Florbela e a brasileira Gilka Machado,
nascida um ano antes que Florbela. Gilka expõe na poesia a diferença
entre as naturezas feminina e masculina ao plasmar a verdade do
sentimento machista que não traz culpa nem ânsia de amar, pois na
sociedade em que vivemos, este parece ser um pecado essencialmente
feminino, herança legada pelo mito de Lilith e por Eva, desafiadoras
das leis em nome do desejo. Gilka foi precursora na luta pelos
direitos da mulher em alcançar as representações do desejo na
poesia, isto é, "não mais um corpo marcado pelo a—menos, mas sim um
corpo que pode assinalar a fonte de um novo discurso". Verseja Gilka:
"Eu sinto que nasci para o pecado,/ se é pecado na Terra amar o
Amor;/ anseios me atravessam, lado a lado,/ numa ternura que não
posso expor".
Vale a pena
citar um outro tipo de luta das mulheres utilizando a palavra
poética: luta mais árdua, luta vã mas tentativa válida no texto
sofrido de Anna Akhmatova (l889/1966), lírica tensa e ampla,
expressando a amargura da mãe que teme pelo destino do filho e da
pátria num momento histórico difícil na União Soviética. Também
Marina Tzvetaeva (l892/1941), de vida e destino trágicos, continua a
nostalgia e a dor no romantismo que expressa a busca da pátria e do
companheiro através da magia verbal e de certa "impostação de voz
populista".
A poesia
escrita por mulheres, vista pelo crítico Wilson Martins, marca a
distância percorrida pelo feminismo literário, pois a leitura
simultânea de uma poeta atual e de uma outra, deixa evidente o
caminho intelectual, emocional e social efetuado pelo feminismo
literário nos últimos 80 anos. O ponto negativo reside na redução da
poesia a lugares-comuns e ladainhas obsessivas, desmonetizando a
temática do desejo, tanto mais que, para W. Martins, ao tratamento
literário dado por uma Gilka Machado, por exemplo e para ficarmos
com uma poeta da qual já falamos, sucede um tratamento fisiológico,
descritivo e referencial, de resto, um tratamento antipoético. A
responsabilidade de tudo isso fica por conta das tentações do
sucesso de escândalo e, assim, Gilka chega a mudar para "Cio" o
título do belo soneto que se intitulava "Noturnos" na edição
original de seu "Cristais Partidos". O crítico paranaense mostra com
segurança como a temática sofreu um desgaste graças aos sobre-lanços
inevitáveis da imitação que causou a condenação na medida em que o
feminismo literário passou a ocupar o espaço do homem, usando o
palavrão, a emancipação sexual e a obrigação do trabalho fora de
casa. Não há como fugir dessa realidade que reflete o extremo
alcançado pela nova mulher. O preço pago por tal geração foi alto.
Ana Cristina César deixou isso claro na sua poesia. Ela escreveu e
pagou o valor: "Pergunto aqui meus senhores/ Quem é a loura donzela/
Que se chama Ana Cristina/ E que se diz ser alguém/ É um fenômeno
mor/ Ou um lapso sutil?".
Passados os
lapsos, enganos, exageros, lutas e, menos a Lilith do folclore
assírio-babilônico, fantasma diabólico, para ser mais um gênero
próprio e diferenciado, a mulher que escreve luta com as palavras na
sempre "luta vã".
|