Gilberto Kujawski
Dora Ferreira da Silva volta a
chamar a
atenção com Hídrias
Dora Ferreira da Silva, trabalhando na
solidão e no silêncio, totalmente avessa à mundanidade literária,
distante das rodinhas e dos conchavos intelectuais, mesmo assim,
conquistou seu lugar na república das letras, legitimada pelo
reconhecimento unânime de todos os que amam verdadeiramente a
poesia. Começando como tradutora inspirada das obras de Rilke e
Holderlin, depois de São João da Cruz e C.G.Jung, firmou sua vocação
e impôs seu estilo vigorosamente pessoal, helenizante, com uma
escalada de lançamentos, como Andanças, Talhamar, Retratos da
Origem, Poemas da Estrangeira, construindo uma obra poética
enfeixada em Poesia Reunida, editado pela Topbooks em l999, obtendo
depois o prêmio Machado de Assis concedido pela Academia Brasileira
de Letras, no ano seguinte (2000).
Com seu novo lançamento, Hídrias (Odysseus,
2004), Dora chama novamente a atenção da crítica e dos leitores. O
livro vem analisado por um estudo de rara penetração hermenêutica,
devido a Luiz Alberto Machado Cabral, que explica: “Hídrias, como o
nome grego indica, são vasos de cerâmica destinados a recolher e a
conter água (hýdos), elemento de importância fundamental na vida de
qualquer povo de todos os tempos, mas que na civilização helênica
adquiriu profunda significação sagrada, chegando mesmo a ser elevado
à categoria de princípio constitutivo do universo”.
Segundo José Paulo Paes, a poesia de
Dora Ferreira da Silva “ronda o tempo todo as fronteiras do
sagrado”. A busca do sagrado por Dora e seu marido Vicente Ferreira
da Silva (1916-1963), tem isso de original e totalmente inédito em
nossa cultura de raízes judaico-cristãs e forte embasamento
contra-reformista: é a procura do sagrado na esfera do paganismo.
Freqüentemente, esquecemo-nos de que o sagrado nunca foi monopólio
do judaísmo ou do cristianismo, ou de qualquer religião monoteísta.
O solo do sagrado, no qual nossa
cultura lança as primeiras raízes, começou na Grécia, com o
politeísmo do qual judeus e cristãos tanto se envergonham, e
consegue expressão, ou melhor, ganha hierofania, na mitologia grega,
com sua florada de deuses e deusas aurorais ocupados em suas tramas
arquetípicas pautando a conduta dos humanos no curso da vida e da
morte. Aos olhos da poetisa não existe fronteira entre os deuses
pagãos e o Deus e os santos cristãos. Paganismo e cristianismo
observam perfeita continuidade na urdidura prodigiosa do unus
mundus.
Nas palavras insubstituíveis de
Constança Marcondes César, captando o “insight” total da inspiração
da autora, “na poesia de Dora o poema é a reativação dos mitos:
contém a força invocada, sopro do espírito”. A Grécia antiga visitou
a poesia brasileira no arcadismo e no parnasianismo. O bucolismo e o
pastoralismo sedativos de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio
Gonzaga, ou a Hélade impassível, escultural e olímpica de Olavo
Bilac. Com a poesia de Dora insinua-se em nossas letras a Grécia
órfica, inspirada não no culto da forma perfeita, como em Bilac, mas
na proximidade e na pulsão dos deuses renascidos das cinzas dos
esconjuros e do esquecimento.
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