Giselda Medeiros
Fortuna crítica: Carlos Augusto Viana
Giselda Medeiros: um emaranhado de
mitos
in Diário do Nordeste, Suplemento Cultura.
5.01.2003
A partir de narrativas curtas, oriundas de um
cotidiano transfigurado, a obra ´Sob Eros e Thanatos´ constrói um
universo intrigante, habitado por personagens simples, mas que,
subitamente, são iluminadas pela presença do insólito, do
imponderável.
O homem é sempre fascinado pelo mito, sendo este,
freqüentemente, instrumento da leitura tanto do ser, instituição
individual, quanto do mundo, tenda da coletividade. Fernando Pessoa
apreendeu, em poesia, o sumo ambíguo do mito: ´o nada que é tudo´.
Polissêmico, polifônico, é, ao mesmo tempo, o falso e o verdadeiro,
o horizontal e a verticalidade; palmilha, desse modo, a linha
fronteiriça entre o real e o imaginário; entrelaça, assim, os
filamentos do cotidiano banal e os das obscuras cavernas do
inconsciente; por tudo isso, materializa o inefável, impondo-nos a
verdade da criação.
A leitura de Sob Eros e thanatos, de Giselda
Medeiros, (RBS Gráfica e Editora, 131 páginas) lança-nos em meio a
um labirinto de mitos. Sua escritura capta os sinais singulares da
vida cotidiana tão-somente para transfigurá-los; por conta disso, a
descrição do que configura o espaço - flora, fauna, arquitetura -
são simplesmente veredas a conduzir o leitor por caminhos tortuosos:
´Aquele ambiente me era inteiramente familiar;
embora o visse pela primeira vez. A paisagem, gostosamente doce, mas
paradoxalmente acre, me evocava mil sensações. A casa-grande, no
alto do terreno, parecia falar-me uma linguagem longínqua,
adormecida como a vegetação que me fitava indiferente. Era uma
quietude assustadora.
No entanto, de ímpeto, um pensamento tomou-se aflitivamente. A
lagoa. A lagoa! Corri...´ (´A lagoa´) (p. 26).
Se há uma flutuação entre o engano e a verdade, é
porque narrar, a partir do real, não é transcrever verdades em novas
verdades, ou mesmo em mentiras. O papel do ficcionista consiste em
penetrar em instâncias nas quais a realidade e a imaginação se
interpenetram. A coleta de elementos de uma cena real é
transgressora deste mesmo real, pois os reveste de contornos difusos
do imaginário:
´Chegaram. Dentro da casa, tudo arrumado,
limpinho, como se estivesse à espera de visitas. Duas redes
estendidas no alpendre, convidativamente. Deitaram-se e, enquanto
esperavam os donos da casa, esqueceram-se de que ´o agora é uma
partícula invisível do tempo, encravada entre o passado e o
presente´. Dormiram um tempo que não poderia ser contado nem medido
por fórmulas humanas.´ (´A pousada´) (p. 10).
Giselda Medeiros, ao escolher para título de seu
livro de contos, Sob Eros e Thanatos, aponta, antes de tudo, uma
inter-relação entre a estrutura de suas narrativas e as tragédias
clássicas: suas personagens estarão entregues às jornadas dos heróis
mitológicos e a ritos de iniciação; entretanto, em vez do pó das
estradas ou das espumas revoltas de mares ou rios, pisarão veredas
anímicas, em viagens que as levarão a revelações, a partir das quais
terão reavaliada a existência e racionalizada a sua condição humana
e social.
Nas tragédias clássicas, os conflitos entre o homem e
a ordem social perturbam a ordem dos eventos; inferimos, assim,
consoante a tensão dialética, que o inexorável se anuncia, e as
personagens deverão lutar contra o destino, vítimas de seus próprios
´demônios´. Conseqüentemente, uma contenda perturba a ordem inicial,
instituindo uma catástrofe; por fim, após danos irreversíveis, uma
certa paz é oferecida aos que sobreviveram às tormentas, e a vida
outra vez se reorganiza, ainda que de um modo completamente
diferente do anterior aos acontecimentos. Os heróis trágicos
reconhecem a razão de seu sofrimento um pouco antes mesmo de a
grande catástrofe se abater sobre eles; entanto, isso não evita que
danos irreparáveis lhes aconteçam; são, severamente, punidos por seu
desafio às normas e por sua ´cegueira´. A morte dos heróis trágicos
causa, quase sempre, um impacto tão violento que faz com que os
outros aprendam com tal processo.
Os contos de Sob Eros e Thanatos são polifônicos:
enquadram-se, ora, no gênero fantástico; mas, também, estabelecem,
aqui e ali, diálogos com o maravilhoso - muito presente nas
narrativas latino-americanas, em que a realidade histórica ou social
está aliada a um mundo mágico -; há os textos alegóricos; e, ainda,
os que nascem da colheita dos grãos cotidianos, sofrendo tênue
transfiguração: a angústia de um pai pela impossibilidade de
reencontrar os filhos que com ele dividem a ceia; a alma da família
aprisionada nos retratos; o homônimo do professor machadiano; os
desastres de Lúcia; a fome de uns olhos; o milagre do Natal; a
verdade inescrutável do rabecão; a epifania de um furto; um
rouxinol, guardião da beleza; o discurso das flores; a cegueira do
mar; os investimentos de Leila...
Os de natureza fantástica se dão quando o
sobrenatural invade o espaço natural, desestruturando-o, através de
temas como: o duplo, a assunção, o retorno ao passado... Tendo como
motivo o sobrenatural, centram-se num fenômeno não explicável pela
razão: não há sinais ou dados que possam intuir a compreensão
racional dos fatos extraordinários. Para o crítico Todorov, os
fenômenos só podem ser explicados pela razão ou pelo sobrenatural, a
hesitação, do leitor ou da personagem, entre uma e outra
possibilidade, ante a presença do insólito, cria o efeito
fantástico.
O conto de abertura de ´Sob Eros e Thanatos´, ´A
pousada´, já define os liames do processo narrativo de Giselda
Medeiros. A princípio, o leitor depara o ambiente, minuciosamente
apreendido, com as pinceladas pictóricas ao gosto dos neo-realistas:
´A casa ficava no alto de uma colina´ (p.9); em seguida, inserem-se
as personagens, logo atraídas por algum convite a advir do espaço:
´- Olha, Luís, que gostosura não será dormir no alpendre daquela
casa, lá no alto da colina! - diz André animando-se.´; (p.10)
finalmente, inscreve-se, de modo abrupto, o insólito: ´Dormiram um
tempo que não poderia ser contado nem medido por fórmulas humanas´.
(p.10). Tal processo narrativo implica uma predileção: às vezes, a
personagem já se introduz de chofre na trama: ´Desde a última visita
ao médico, naquele final de tarde, ele se retraiu e entrou num
processo de passividade extrema´. (´A confidência´) (p.18).
Os contos de Giselda Medeiros perseguem, sob o ponto
de vista da forma, a expressão mínima, daí o gosto pela expressão
nominal e o largo uso de frases curtas, de períodos breves,
predominantemente coordenativos:
´Rubião desperta sobressalto. Havia dormido
pouco e mal. A claridade do dia amanhecente contrasta com o céu
nublado, pesado, de sua alma. Atmosfera adversa!
Esfrega os olhos túrgidos de sono e de vergonha. Lembra, agora: que
vergonha! Rubião, Rubião... ´ao vencedor, as batatas!´
Perde-se num emaranhado de pensamentos desordenados... Não era
possível! Não poderia ter acontecido aquilo! Era, sim, Rubião! Tanto
era, que aconteceu!´ (´Ao vencedor, a borboleta´) (p. 43).
É, também, comum, servir-se do discurso indireto
livre com o intuito de adensar a atmosfera das narrativas mais
introspectivas; implica uma variação do foco, e o narrador cede seu
ponto de vista à personagem, agora encarregada de conduzir a trama:
´Será que caminhava? Talvez flutuasse. O corpo, que não consigo
tocá-lo, tem a fluidez do vento. Não, não, caminhava´ (´Liberdade´)(
p. 67). Quanto ao emprego do discurso direto, não há um padrão: ora,
destaca-se em parágrafo, sendo indicado por um travessão simples;
ora, atrela-se normalmente ao texto, entre vírgulas ou destacado por
aspas: ´Lembra-se do celular. Liga o número do telefone de Laura.
Talvez haja alguém lá dentro. Algum policial. Chamada... Um alô
conhecido fá-lo estremecer: ´Lau...ra???´ E novamente o telefone a
emitir o som de uma sirene...´ (´Difícil é a vida e o seu ofício´)
(p.58).
As personagens, estando sob a égide de Eros e de
Thanatos, são depositárias dos controversos sentimentos: amor, ódio,
loucura, vingança, traição, inveja, despeita... Para melhor
condensá-los, assoma uma linguagem concisa, sincopada, com cortes
bruscos da frase: ´Peso nos olhos. Pensamentos turvos. Esquecimento.
Fraqueza... Vulnerável, o sono domina-me. Ou a loucura? Confusos
sonhos preenchem-me o espaço do sono.´(´A fogueira´) ( p.22-23). A
tal procedimento alia-se um estilo mesclado, no qual convivem, com
naturalidade, uma construção frasal que denota o conhecimento formal
da construção da língua e alternância de registros eruditos e
populares, de acordo com a imposição da trama: ´O homem algemado
baqueou para frente e para trás, caindo sentado numa cadeira,
estatelado, num acesso de tosse braba. § - Então é você o tal homem,
não é? § - Sô home sim, dotô, só num sei se sô o home que o dotô
percura´. ( ´A vingança´),( p.34).
Atuando entre dois pólos - o da imaginação e o da
realidade objetiva -, Giselda Medeiros oferece ao leitor o insólito
como antídoto ante um mundo lógico e programado, pois a este, sem
dúvida, é que aspira a construção burguesa. Surge um outro haver,
aparentemente adormecido: o das narrativas mágicas que povoaram a
infância num tempo não muito distante, mas, quase que totalmente,
condenado ao esquecimento. Recriação dentro de uma outra recriação.
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