Gláucia Lemos
O sinal de nascença
Maravilhados com a imponência da sala,
olhávamos tudo com incontida curiosidade, pois nunca a tínhamos
visitado antes, Começávamos a conhecer cada peça do mobiliário
enquanto, ao mesmo tempo, eu tentava reconhecer as personagens
retratadas e emolduradas nas redomas que pendiam das paredes,
suspensas por longos cordões trançados.
Aquele senhor moreno de cabelos
lustrosos, espessos bigodes bem aparados e costeletas recortadas,
era, sem dúvida, o meu bisavô Diogo. Olhar severo sob sobrancelhas
negras, queixo forte e nariz afilado, formavam um belo conjunto
definindo bem o rosto do homem de cuja personalidade impressionante
eu estava acostumada a ouvir falar desde a minha infância.
Comentavam, em tom que se equilibrava entre respeito e temor, que
administrava o engenho com punho firme, aplicando igual rigor na
consideração dos erros e dos acertos, quando punia cruelmente os
primeiros e premiava generosamente os segundos. Não conhecia meias
medidas, ou, se as conhecia, preferia ignorá-las. Nunca perdoando,
jamais negando prêmio. Mas tudo na exata medida em que lhe parecia.
Aquela moça da redoma a seu lado, era, com certeza, a minha bisavó
Idalina. Olhei-a com simpatia. Demorei-me examinando o rosto
delicado e fino. Cabelos escuros, penteados em bandós, ornavam as
faces brancas que me pareceram de louça. Olhos grandes e claros
irradiavam uma expressão tranqüila, embora, talvez, um toque de
melancolia.
Corri ao grande bisotê que encimava um console e comparei meu rosto.
Era verdade. Eu era muito parecida com a minha bisavó, como minha
mãe costumava dizer. Os olhos cinzentos, graúdos, a conformação do
nariz, o desenho dos lábios. Se me penteassem uns bandós, poderiam
dizer que aquela foto era minha. Teria tido minha mãe uma premonição
ao escolher para mim o mesmo nome de sua avó. Apenas uma diferença
existia entre os nossos rostos: eu trazia na face esquerda um sinal
de nascença. Um pequeno traço oblíquo que poderia ser confundido com
uma leve cicatriz de arranhão. Sinal que não encontrava no rosto sem
mácula da minha bisa Idalina. Dizia a crendice popular que minha
mãe, quando grávida, teria guardado em seu sutiã algum objeto de
forma semelhante àquela que acabara por marcar o meu rosto. Talvez
uma fina corrente de medalha que costumasse usar no pescoço,
repousasse por acaso entre seus seios.
Devagar, continuamos explorando o casarão. Examinávamos tudo
cuidadosamente, Olívio e eu. Gostamos da estante de canto, da
delicadeza de uma enorme cristaleira jateada com ramagens, onde
ainda estavam guardadas donzelas, jarras de opalina e compoteiras.
Rimos da namoradeira, cada assento voltado em sentido contrário ao
do par. Olívio apaixonou-se pela cômoda barroca e se deixou
apreciando as graciosas volutas, enquanto eu me pus a andar pela
sala e, foi então que encontrei a cadeira. Era algo extraordinário,
imponente.
Uma cadeira de braços, de espaldar alto, estava colocada em lugar de
destaque no salão. Parecia um trono. Ouvira falar dessa famosa
cadeira do meu bisavô. Sentado nela, o fidalgo ditava as ordens no
engenho. Demorei-me apreciando-a Pernas sólidas que terminavam em
pés de dupla garra. O encosto lavrado, ostentava no alto o brasão, à
maneira das armas de uma casa nobre. A quantas cenas aquela cadeira
teria assistido... Sentado nela meu bisavô teria exercido seu
tirânico poder sobre familiares, mucamas e escravos daquela
propriedade. Atraída, fui-me aproximando.
Quanto mais me aproximava, mais me sentia atraída pela cadeira.
Comecei a sentar-me. Tão logo acomodei-me no assento, fui possuída
por estranha sensação de poder. Inicialmente atribuí à situação da
peça, como um trono em local privilegiado na imponência da sala.
Procurei avistar Olívio. Estava ajoelhado examinando os pés de
bronze de uma arca. As solas dos tênis, voltadas para cima,
mostravam-se muito sujas da terra do jardim. No meu costumeiro
cuidado por asseio na casa, isso me fez sentir inexplicável
irritação que me tomou subitamente. Um sentimento novo e agressivo.
Procurei conter-me e chamei:
- Olívio!
Meu marido estava inteiramente absorto, sentindo nos dedos o
caprichoso lavrado que ornamentava a arca, apaixonado que era por
arte de marcenaria. Seu silêncio inspirou-me um sentimento de ira
incontrolável, até então desconhecido para mim, e gritei:
- Olívio!!!
Assustado, ele ergueu-se de um salto e me olhou. No rosto uma
surpresa de quem não me entendia. Eu estava trêmula de irritação.
Agarrava-me aos braços da cadeira tentando conter-me, mas me tornara
possuída por uma raiva incontrolável. Meu marido, olhos em pânico,
correu para mim, tomando-me nos braços. E foi quando o abraço
amoroso de encontro a seu corpo tirou-me da cadeira, perguntando o
que havia comigo, que comecei a me tranqüilizar e senti vergonha de
lhe dizer da violência que me possuíra. Eu sempre fora louvada pela
serenidade. Disfarcei, falando que me sentira muito mal de repente,
e gritara tanto para que me socorresse, mas já estava bem. Olívio
atribuiu ao calor da sala, pois havia no ar um incômodo abafamento.
Abriu as janelas e nos pusemos a comentar a história daquela casa.
A casa grande do engenho não era habitada pela família havia
muitíssimos anos. Empregados encarregados de limpá-la e conservá-la
com tudo o que nela se encontrava, cuidavam fielmente desse encargo.
Minha mãe, filha única de uma única filha, herdara dos avós, pelos
quais fora criada ao perder os pais em um acidente, tudo o que havia
no engenho. Desde a morte dos avós, porém, nunca mais voltara ali,
receosa das recordações que a magoariam. Por esse motivo, Olívio e
eu não conhecíamos o local, onde somente meu pai ia, regularmente,
para administrar a lavoura de cana, já que o engenho fora
desativado. Para nós, tudo era novo e fascinante, já que só
conhecíamos a história.
Retornamos a conhecer os cômodos da casa e planejar modificações que
nos permitissem trazer as crianças durante as férias para
aproveitarem a quietude e a liberdade que poderiam desfrutar em todo
aquele espaço da fazenda.
No início da tarde o céu mostrou-se nublado, e sem tardança o
aguaceiro desabou precedido pelos relâmpagos e pelo ribombar da
trovoada. Esquecemos o episódio da cadeira, preocupados que
estávamos com a necessidade de retornar para as crianças que nos
esperavam na cidade, aos cuidados de minha cunhada,o que estava
dificultado pela mudança do tempo.
À tardinha um caseiro veio nos avisar que não poderíamos regressar
naquela noite. Ruíra, ao peso do temporal, a velha ponte que se
estendia sobre o rio, cujas águas cresciam inundando inteiramente as
margens. A comunicação estava interrompida. Pernoitaríamos na casa
grande do engenho, até que no dia seguinte pensássemos em como
voltar, talvez por um caminho mais longo, por onde fosse possível
passarmos com o carro.
Recolhêmo-nos cedo. Não havia lua, só as águas do céu generosas. Sem
demora os sapos puseram-se a coaxar nos brejos, e os grilos a
habitar o pouco silêncio que a tempestade permitia.
Despertei aos gritos que me chamavam.
- Idalina! Idalina!
Era uma voz de homem de entonação muito forte. Sentei-me na cama
ainda atordoada, enquanto repetia-se o chamado. Olhei em volta. A
meu lado meu marido ressonava calmamente. Algum dos empregados
estaria a berrar meu nome? Mas daquele jeito? Os cachorros
continuavam silenciosos, o que me garantia que na área externa da
casa nenhuma anormalidade acontecia. Só a chuva que lá fora
continuava ruidosa, como um soturno fundo sonoro àquele estranho
apelo.
Levantei-me entre apreensiva e sonolenta, aproximando-me da porta
cuja vidraça era velada por pesada cortina. Afastei-a com cuidado,
sem abrir a porta, e pus-me a espionar o salão contíguo à alcova
onde nos acomodáramos. Sem entender, com olhos ainda turvos de sono,
vi que havia alguém ocupando a cadeira majestosa. Era um homem.
Usava um colarinho alto, engomado, que quase lhe tomava o pescoço.
Aquelas costeletas, aquele bigode aparado, o meu bisavô Diogo?!
- Idalina! Idalina!!! - ele ainda gritava impaciente.
Comecei a tremer. Eu não atenderia àquele chamado. Prendi a
respiração e deixei-o continuar . Em pânico, sequer ocorreu-me
acordar Olívio.
Logo, porém, pela porta do corredor, assomou a figura esbelta da
minha bisavó Idalina, no passo suave, cheia de dignidade. Olhos
fitos no meu bisavô, as mãos branquíssimas segurando as pontas da
mantilha rendada, ela aproximou-se e, sem dizer palavra, parou à sua
frente. Vi o bisavô Diogo voltar a cabeça na direção do corredor, e
ordenar gritando:
- Tragam a negrinha!
Imediatamente, dois negros vestidos com calções que lhes chegavam às
canelas, entraram arrastando uma mucama até a frente de Diogo que se
levantou e, retirando do espaldar da cadeira um chicote muito
comprido, estalou-o no ar e voltou-se para minha bisavó, exclamando:
- Vou castigar sua protegida, senhora, para que aprenda que neste
engenho todos têm que obedecer somente às minhas ordens. Somente eu
mando aqui e ái daqueles que me desobedecem.
Levantando o braço da prepotência, aplicou na negrinha a primeira
chicotada. A menina gritou e rolou no chão gemendo. O rosto de
Idalina contraiu-se. Escutei sua voz atormentada, enquanto avançava
e se punha entre o marido e a negrinha, protegendo-a.
- Não, senhor meu marido, não a castigue mais!
- Saia da frente, senhora, não quero machucá-la! - ele gritou.
E, erguendo o látego mais uma vez, cheio de indignação, a segunda
chicotada colheu em cheio a face esquerda de Idalina, que se
interpunha, protegendo a menina. Vi minha bisavó cambalear com as
mãos no rosto, sem um gemido, e, mantendo a dignidade do silêncio,
correr para o interior do casarão, deixando cair sem cuidado a
mantilha rendada.
Foi como se sentisse arder a chicotada em minha própria face. Era
terrível. Numa vertigem, recostei-me ao portal. Levei as mãos ao
rosto. Estava úmido. Minhas mãos ensangüentadas. O meu sinal de
nascença sangrava.
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