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Gláucia Lemos


 


Sim, senhora


 

 

Olhou para dentro do quarto, durante alguns segundos. Depois foi até lá fora, abriu o portão de ferro e retornou.

Deitou na mesma cama ao lado do morto, ficou até o amanhecer. Mas não dormiu, permaneceu olhando o telhado, como estava acostumada a ficar todas as noites, enquanto ele roncava a seu lado. Tinha sido sempre assim, havia longos anos. Ele roncava, cheirando a pinga, a barba emaranhada rescendendo a charuto barato, enquanto ela velava, de olhos para o teto. Velava a própria solidão, tomando conta dela como se fosse uma filha. E era uma filha daquela união, a solidão alimentada com a amargura silenciosa dos dias e com a sacrificada secura das noites.

Pois, ali estava ela, velando a mesma solidão, ao lado dele. Só que, daquela vez, ele não roncava, não podia mais. Nem podia mais atravessar o braço por cima do seu tronco, com o poder e a força do domínio, para se esparramar com o que restava das noitadas entre as quengas do cabaré de Diodete.

A madrugada não tardou. Ela a viu chegar convidando-a pelas frestas do telhado, em pequenos pontos que se infiltravam. Depois, o galo do quintal acordou o silêncio com o ruído abafado das asas, e cantou três vezes, e os outros galos responderam, lá nos quintais da vizinhança. E antes que o bem-te-vi "bem a visse ", no beiral da casa, como todas as manhãs, levantou-se e não olhou mais para o que restava dele.

Da janela da cozinha, chamou o negro.

- Altino! Tá dormindo, Altino?

- Senhora!

- Vem cá.

- Senhora?

- Tem um homem morto em minha cama.

- Tem?

- Tá vendo o portão aberto?

- Tô sim senhora

- Foi por ali que o assassino fugiu. Você viu quando ele fugiu, não viu, Altino?

- Sim, senhora!

- Leve o finado nas costas antes que o dia clareie, e dê sumiço.

- Sim, senhora.

- Enrole bem enrolado em duas esteiras, e dê sumiço.

O negro não saiu de perto dela.

- Que foi, Altino?

- Né mió butá dento de um porrão?

- Tá bem. Bote dentro de um porrão e tampe a boca bem tampada

- Sim, senhora.

- O maior porrão que encontrar na olaria da fazenda.

- Sim, senhora.

O negro saiu. Voltou carregando um porrão enorme. Era um negro pequeno e largo. Tinha as pernas entroncadas como toros de coqueiro. Os pés cascudos, de calcanhar rachado, as mãos grandes, onde dedos grossos e nodosos pareciam feitos de barro cozido. Ela não entendeu como ele agüentava o peso daquele porrão, quase maior que ele.

Entrou no quarto, demorou-se.

- Anda com isso Altino, antes que o dia clareie.

- Sim senhora.

Saiu logo depois. Equilibrava o porrão sobre as espáduas, o pescoço grosso encurvado, como costumava carregar os caçuás de manga-rosa. Parou na porta da cozinha, antes de sair.

- Senhora?

- Que é. Altino?

- Né bom levá os pano da cama? Tá tudo lá daquele memo jeito

- Pode deixar que eu cuido.

- Sim senhora.

O negro saiu. Atravessou o portão de ferro que ela deixara aberto. Depois desceu os degraus, venceu a área frente à casa, até alcançar a porteira da fazendo que abriu sem dificuldade, e se foi com o porrão sustentado em cima das espáduas. Os braços curtos, estufados de músculos, sustentando o peso pelas laterais. O dia nem tinha clareado de todo.

A mulher voltou para o quarto e apanhou os panos amarfanhados que estavam na cama. Exalavam cheiro acre de suor e aguardente. Fez uma grande trouxa. Em seguida saiu a caminho do quintal e se embrenhou entre as árvores e os arbustos que se cruzavam na farta vegetação. Pegou a enxada que estava encostada ao cajueiro e começou a escavar um fosso. Com esforço, a enxada feria a terra preta umedecida de orvalho, e voltava carregada, como se a terra vomitasse a sua própria substância.

Abriu a trouxa e, na cova, sepultou um a um, os lençóis que trouxera. Olhou-os longamente. Era como se deles viesse ainda o cheiro ardiloso do suor do homem e do seu próprio suor. A morrinha das secreções do macho bruto e infiel. Sensação de náusea. Nojo misturado a rancor.

Então, voltou-se.. No quartinho próximo havia querosene e fósforos.

Os olhos da mulher tinham um brilho de volúpia enquanto esvaziava a garrafa de querosene em cima dos panos, jogando sobre eles o fósforo aceso. O fogaréu subiu de dentro do buraco. A fumaça cheirava a cio e a carne sangrenta. Cheirava a cuspo e a sangue e a dor. E subia cinzenta, espalhando-se por entre os galhos dos cajueiros e tisnando os jenipapeiros nas suas folhas largas.

Quando o fogo acabou, retomou a enxada e devolveu toda a terra para cima das cinzas, até encher a cova. Voltou depois para dentro da casa, com passos lentos e seguros. Suava nas faces afogueadas, passando as mãos repetidamente para enxugá-las, pois o sol já queimava a manhã clara.

A cozinheira coava o café e amassava o cuscuz de farinha de milho.

- Josina!

- Senhora?

- Desarme a cama daquele quarto e leve as peças para fazer a fogueira do São João dos peões da fazenda.

- Sim senhora.

- Hoje! E quando o café estiver pronto me chame.

- Sim senhora.

Foi para a varanda e espichou-se na rede. Com olhos vagos, demorou-se no casal de rolinhas que bicava grãos de areia entre as pedras do chão. Graciosas, doces, um casal.

O negro retornou.

- Senhora?

- Pode dizer, Altino.

- Já dei sumiço.

- Onde deixou?

- No rio.

- Retirou a tampa?

- Tirei sim senhora.

- Encontrou alguém?

- Não senhora.

- Então pode ir cuidar do seu serviço.

- Sim senhora.

- Meu café, Josina?

- Tá pronto, senhora.

Sentou-se à cabeceira da mesa comprida da sala. O cuscuz fumegava brilhando de manteiga e requeijão derretido. A xícara cheirava a café torrado na hora.

No fogão, o negro esticava o braço com a caneca de alumínio para a cozinheira encher de café.

- Altino!

- Que é, Josina?

- Deu sumiço no quê?

- Num porrão grande.

- Tinha o que dento?

- Uma pução de mulambo.

- Oxente!!! Pra dizê que a patroa indoidou de onte pra hoje? E foi pela viage do patrão... Vai vê porque ele nunca viajou, só saía pra se fretá mais as quenga de Diodete... Mulé qui só fica com home den'de casa, é assim... No quele viajou ela indoidou. Mais foi dipressa dimais. Mandou queimá a cama... Já se viu?

- Rum...

- Eu nem vi conde ele saiu. Foi de cavalo? Tu viu?

- Hum-hum...

Silêncio demorado caiu na cozinha. Só se escutava o ruído que a colher fazia arranhando o fundo da caneca do negro que mexia o café.

- Altino?

- Qui é agora, mulé?

- Donde tu jogou o porrão grande?

Silêncio e

- Bote mais açuca no meu café..

A mulher chamou o negro.

- Altino?

- Senhora?

- Ferra duas crias gordas com tua marca.

- Sim, senhora. Qual é as cria?

- Á tua escolha.

- Sim senhora.

- Tu mereces, negro fiel.

A mulher chegou ao galpão e estranhou o negro preparando o ferro. Ao lado, meia dúzia de crias grandes bem cevadas, estavam à espera, para ser marcadas.

- Altino?

- Senhora?

- Quantas crias te mandei ferrar com tua marca?

- Duas cria, senhora.

- Juntaste seis crias. Sabes contar, negro?

- Sei contá, sim senhora.

- E então, Altino?

- O porrão dos mulambo tava muito pesado. Os mulambo pesava o peso de seis cria, senhora. Se a senhora quisé, trago o porrão de vorta, com tudo o qui tá dento.

- Deixa o porrão lá mesmo, Altino. Deixa o rio levar.

- Sim senhora.
 

 

 


 

10/08/2005