Gerardo Mello Mourão
Invenção do Mar
Ed. Record, 1998
[Prêmio Jabuti
1999]
1. - Wilson Martins - Os Brasilíadas
2. - Epitáfios
3. - Canto I
Wilson Martins
[in O Globo,
13.03.1998]
Depois
de variadas tentativas e erros (em que o número de erros igualou
exatamente o das tentativas), foi finalmente escrita a epopéia da
nacionalidade brasileira, prolongamento e diversificação
da que se cristalizou para sempre nas estrofes brônzeas dos Lusíadas
(Gerardo Melo Mourão. Invenção do mar. Rio: Record,
1997).
Ao tempo de
Camões (e muito depois), o Brasil era apenas uma realidade geográfica,
"Terra de Santa Cruz pouco sabida", já cobiçada, entretanto,
pelo "pirata Francês", rica do "metal que a cor tem do louro Apolo",
e habitada por "várias gentes, em ritos e costumes diferentes".
A epopéia nacional portuguesa foi condicionada pelo mar ("O mar
salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!",
enquanto o Brasil determinou-se pelo signo da terra, diferença substancial
que fixou o destino e a natureza das duas nacionalidades: epopéia
da navegação, de um lado, e, de outro, epopéia da
conquista territorial.
O título
do volume indica que o tropismo marítimo de Portugal predominou
no espírito de Gerardo Melo Mourão sobre o tropismo telúrico
do Brasil: é nisso, entretanto, que Brasilíadas e Lusíadas
diferenciam-se entre si, em histórias paralelas, embora complementares.
É, aliás, o que se lê em dois belos versos: "E os que
nascem no mar são portugueses / e o mar é o chão maior
de Portugal". São trajetórias marcadas, de um lado e de outro,
por nomes emblemáticos, assinalando-lhes momentos e episódios
cruciais. Gerardo Melo Mourão acentua-o expressamente desde as linhas
preliminares: "O texto está feito com nomes e nomes e creio na força
dos nomes de lugares e pessoas e coisas". Não apenas nomes estereotipados
das grandes personalidades cristalizadas pela história em poses
estatuescas, mas também pelos anônimos que, por paradoxo,
deixaram o nome ligado à "primeira manhã do mundo", como
diz o poeta ao evocar a nomenclatura imortal da "escritura lavrada no porto
seguro da Vera Cruz": "E o Capitão mandou à terra Nicolau
Coelho ["primeiro cristão a pisar o chão achado"] - "e o
Capitão mandou à terra Afonso Lopes", para nada dizer da
lápide encontrada numa igreja da Bahia: "Aqui jaz Afonso Rodrigues,
natural de Óbidos, o primeiro homem que se casou nesta terra".
Era o momento
lustral da criação do mundo:
O Creador
creou o mundo
E Diônisos
e Henrique e João e Manuel
e Cristóforo
e Dias e o Gama e Pedrálvares e os outros
mediram o
mundo e deram nome
às
coisas e aos lugares e ás pessoas do mundo
em terra
e mar []
Logo em seguida
chegaram as "naves populosas de soldados / de santos, heróis, bandidos,
aventureiros, / lavradores, espadachins e degredados, / oficiais de ofícios
do couro e do ouro, / da madeira, dos panos, do ferro, / do cobre, da prata
e do latão - ourives, / algibebes, aljubeiros, tanoeiros []".
Escrito em
dicção refinada e liberta do fascínio camoniano que
paralisou tantos esforços anteriores, o ritmo do poema é
marcado por versos de grande beleza e poder evocativo: "a graça
nupcial das caravelas" - caravelas em que os marinheiros cavalgavam as
"ladeiras bravias das tempestades / no chão de sal das águas
bravas". Ou então, introduzindo-nos no centripetismo da história
brasileira, os conquistadores "pisavam duro o chão das cordilheiras
e pisavam a cova dos cartógrafos / dos papas e dos reis com seus
tratados. // o cascalho e a poeira dos caminhos / manchavam desmanchavam
tordesilhas / e empurravam fronteiras de papel".
De fato, como
ficou dito, se os Lusíadas cederam à "tentação
do Oriente" e com isso conquistaram o mundo (mas o grande mundo dos Brasilíadas
situava-se justamente a Ocidente), estes últimos entregaram-se ao
misterioso chamado do território desconhecido: "Buscavam horizontes
e sonhavam / ouros, pratas, rubis e diamantes / e uma esmeralda - o Príncipe
Esperado". Aqui, a caminhada histórica é pontilhada de outros
nomes emblemáticos, pois os alvarás de D. Sebastião
estabelecem a ligação com o Brasil: o rei que perdeu um império,
criava outro, involuntária mas automaticamente, no outro lado dos
mares. Os "aventureiros do rei" chamavam-se Borba Gato, Dias Paes, Anhangüera,
Raposo Tavares e até o Amador Bueno, que não quis ser rei
do Brasil.
Surgiram,
pouco a pouco, os nomes geográficos, como no poema de Ascenço
Ferreira, aqui sugestivamente evocado - "os nomes que só os nomes
fazem sonhar - fazem chorar": Vila Bela, Lavras da Mangabeira, Juazeiro,
Inhamuns, Pajeú de Flores, Barra Velha, Camaratuba, Ponta Verde,
Igaraçu, Ouro Branco, Ouro Podre, Ouro Velhos, Olinda, Todolossantos,
Campanha da Princesa - tudo isso entrelaçado com os patronímicos
que fizeram o Brasil, os Queiroz, os Magalhães, os Gouveias, os
Lopes, os Mellos, os Vieiras, os Carvalhos, os Buenos, os Ponces, os Camargos,
os Teixeiras, os Tibiriçãs, os Botelhos
fazem a raça,
o povo, seus soldados,
os bandeirantes
de Piratininga,
e a Nova
Lusitânia de Pernambuco;
[]
mestres das
artes, profissões, trabalhos
tinham todos
o ofício que legaram
aos herdeiros
da terra - fazer pátria.
E a fizeram,
como Martim Afonso, que, naufragando, salvou-se numa tábua, "andou
roto e faminto por praias e brenhas / e flechas de antropófagos
e rondas da morte / e a morte e a fome e o naufrágio e o perigo
/ rondavam e creavam o país" - ou, ainda, como a cláusula
testamentária de Raposo Tavares, que, ao partir para o desconhecido,
resumia em algumas palavras toda a epopéia brasileira: "indo a caminho
da guerra e sendo mortal e não sabe o que Deus Nosso Senhor de mim
fará []".
Tanto quanto
os Lusíadas, os Brasilíadas aceitaram o desafio do Destino,
assim como Gerardo Melo Mourão aceitou e venceu o desafio do grande
poema de 1572.
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