Gerardo Mello Mourão
Invenção do Mar
Ed. Nova Fronteira, 1998
[Prêmio Jabuti
1999]
1. - Wilson Martins - Os Brasilíadas
2. - Epitáfios
3. - Canto I
EPITÁFIOS - (I)
Escritos entre 1995 e 1996,
estes cantos têm seu momento seminal em 1964, durante anos de exílio
no doce país do Chile. Ali aprendi a dar umas sofridas aulas sobre
as Américas, seus achamentos e seus enigmas, especialmente as Américas
de língua latina. Ali, de certo modo, chegou o sopro do poema, entre
o porto de Valparaíso e os ares de Viña del Mar, em dias
e noites e céus e vinhos, numa inquieta Escola de Arquitetura da
Universidade Católica, pendida de penedos altos, debruçados
sobre o Pacífico, o outro lado em que se fecha o parêntese
das águas continentais, contraponto do mar Atlântico. Alí
foi seu roteiro sugerido pela aventura poética de Godo - Godofredo
Iommi - iniciada com a Santa Hermandad de la Orquídea, que já
fizera, desde 1940, a navegação mediterrânea e a das
águas marítimas e fluviais do Brasil e do Prata, tomando
caminhos de bandeirantes e navegadores dos dias aurorais da invenção
do mundo nosso. Andamos, escoteiros ou em bando, os caminhos de Raposo
Tavares, Borba Gato e Fernão Dias, entre Piratininga, Paraná,
Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande do Sul, países missioneiros
aquém e além fronteiras, a Banda Oriental, a Argentina e
o Paraguai, o país das Gerais, a beleza dos Goiazes do Anhanguera
e as catas dos Cuiabás. A pé, a cavalo, de canoa e de avião,
repetimos os caminhos da Casa da Torre, entre a Bahia e o Piauí
e os caminhos de Pedro Teixeira, de Belém ao Amazonas, ao Acre,
ao Amapá, fronteiras da Guiana, à Colômbia e o Equador.
Desembarcamos como Pero Lopes nas praias de Pernambuco, da Bahia, do Siarah
Grande, em todas as angras do país do Nordeste, Sergipe, Alagoas,
Rio Grande, Paraíba do Norte, o Piauí e o Maranhão
e navegamos as serras e os sertões, até o Raso da Catarina,
nos rastros de Canudos, por engenhos de cana e vilas da guerra holandesa
e das insurreições dos primeiros fazedores de pátria.
A segunda estrofe da aventura começou pelo Chile, desceu à
Patagônia argentina, subiu pelos mares costeiros, pelos desertos
de Atacama, Coquimbo, Copiapó, Arica e Tacna, e pelos caminhos dos
Andes do Peru, Pucalpas desoladas, Bogotá, comarcas, selvas e serras
da Colômbia e as avenidas de neve do altiplano boliviano e a Venezuela
de Bolívar. Nesta anábase e catábase da América
tomou parte um bando de poetas, pintores, escultores e arquitetos.
A viagem foi documentada numa preciosa e inesquecível bitácula,
um diário de bordo da navegação terrestre por vários
países, em que todos os navegantes
deixaram escritos textos de um memorandum épico-lírico dos
achamentos, da mera invenção, dos chãos
andados e estimados. Os peregrinos dessa navegação por tempos
e espaços novamente inventados deram testemunho escrito da romaria
continental, reunido num poema chamado "Amereida", partitura poética
guardada num raro livro do qual se tiraram apenas algumas dezenas de exemplares.
Depois, contemplei o mar de Lagos, no Algarve, as ribeiras do Tejo, o Cabo
de São Vicente e os ventos salgados de Sagres, onde sonhava o Infante.
Naveguei por terra e mar toda a América Central, o Caribe, Porto
Rico, a Flórida, a Califórnia, o Texas, ribeiras do Hudson
e do Potomac, as cidades de Pound e Walt Whitman, o México, as Assírias
do norte, o Canadá e especialmente o país francês do
Québec - terras e mares revelados todos pelos descobridores portugueses.
Parei também nas estações e aguadas das viagens tenazes
ao mundo atlântico, nos Açores, na Madeira, por Marrocos e
Senegais e as amadas ilhas africanas do Cabo Verde. Dessas travessias
e dessa convivência pude adivinhar e tocar com as próprias
mãos a espantosa grandeza dos portugueses, até nas Índias
da Goa de Ouro, em Macau, na China, na Cochinchina, no Japão, na
Tailândia, na Malásia, na Indonésia e nas Filipinas,
por onde naveguei na espuma do Galeão de Manila e das caravelas
redondas. Eles inventaram o mar, que inventou o Brasil. Pois o Brasil é
uma invenção do mar, inventado por Portugal, incorporado
pelos bandeirantes e fundado pelo sangue das gentes do Nordeste na guerra
holandesa, gentes de pré ou de prol de nossas três raças:
negros, índios e portugueses.
G.M.M.
EPITÁFIOS - (II) -
PARTITURA DO POEMA
ou
PEQUENA VIAGEM, digamos,
AO INTERIOR da POESIA em trechos de cartas violadas entre poetas e um post-scriptum
ou dois, ou três, ou mais.
***
....."Aos vinte anos fui golpeado
pela advertência de Verlaine: " il faut tordre le cou de l'éloquence".
Os poetas românticos brasileiros, muito lidos na adolescência,
me haviam infeccionado com sua eloqüência. Eram quase sempre
oradores e declamadores. Mas como na exclamação de Gide -
"Victor Hugo, hélas!' - os poetas brasileiros importantes
- ai de nós, - ou graças a Deus - ainda são os rapazes
do romantismo. Têm mais de um século de vida. E nenhum dos
que vieram depois os leu impunemente. Até que, dspois da vinda de
tantos Malherbes bem intencionados, enfim JORGE DE LIMA veio. São
Jorge de Lima, o Rei-salmista, o Rei-cantor D. Jorge de Lima, Rei de viola
e tuba e flauta-doce e armônica de fole e também clarins.
O órgão - órganum - da cantata, oratório, sinfonia
na capela da festa. (Carta a E.S.)
***
...."O sagrado terror
da eloquência levou alguns escritores de poesia a uma radical exacerbação
contra a eloquência, ao culto da anti-eloquência, que é
outra forma de eloquência. Tanto como os eloquentes, os anti-eloquentes
estão sob o signo de Monsieur Jourdain: fazem prosa sem saber. (Carta
a S.)
***
...." é preciso
castrar os substantivos, isto é, tirar-lhes as excrescências.
As excrescências são os adjetivos qualificativos. O substantivo,
o nome, o puro nome, tem em si mesmo sua mera e única qualificação.
O adjetivo não pode aparecer senão excepcionalmente. Em sua
hora e sua vez. Como uma flexão do puro nome, não como um
apêndice qualificativo, ornamental, do susbtantivo. O nome não
precisa de nenhum décor, nenhuma decoraçao. O nome, o substantivo,
é seu próprio e natural adorno. O adjetivo só pode
aparecer quando, por privilégio do substantivo, parido de dentro
dele, salta de seu útero ou de seu esperma, como um caroço
reprodutor. Ë o que acontece em Homero e Virgílio. De otro
modo, morte ao adjetivo"! (Carta de R.Y.)
***
...."Os adjetivos - como
as preposições, conjunções, etc. - são
peso morto que desfigura a ereção do mero nome. Que o abatem,
corrompem, depravam e estendem uma cortina, uma poluição
visual contra sua imagem. A poesia me ensinou que o adjetivo (como seus
contíguos - advérbios, etc.) é a coisa do retórico,
do orador, para arredondar e "acabalar" os conceitos de sua razão.
Isto está na luz do entendimento poético. Eu não saberia
explicar como, mas é assim. Assim é. Assim sabem os poetas.
Sabia Hoelderlin, segundo Heidegger. Hoelderlin, poeta dos poetas, poeta
da poesia. Em outra escala, segundo Gerardo Diego, até García
Lorca, poeta de cantares, também sabia disso". (Carta de N. L.)
***
...."Pode ser que
existam os 360 modos de escrever poesia, de que fala Eliot, no sentido
de que o escritor de poesia seja um fabbro, mas eu mesmo não conheço
outro melhor que o trabalho corpo a corpo com o mero nome. Isto, porque
as imagens, as comparações, as alegorias simbólicas
não são a coisa da poesia, de seu conhecimento mágico.
A coisa da poesia é a metáfora, um nome que se transporta
de si mesmo a si mesmo e a outro nome e a outro nome e a outro nome. Então,
a coisa é enumerar, enumerar, nomear e nomear e tornar a nomear
os nomes. Referir, re-ferir, trans-ferre, de-ferre, re-ferre. Não
sei se Walt Withman é o puro poeta, Mas há às vezes
em suas estrofes um vigor oracular, uma força natural que não
tem nada a ver com a eloquência da invectiva de Verlaine. É
o vigor elementar e salubre das coisas e lugares e pessoas, chamadas por
seu próprio nome, infinitamente, ou até onde podemos ouvir.
Lembro os textos poétcos exemplares: o catálogo das naus
e o escudo de Aquiles em Homero, o desfile de condenados nos tercetos do
Dante, a construção de uma ponte nas Gálias, nos Comentários
de Júlio César, etc.(meta-fera
- meta-fora - levar além e mais além". ( Carta a E.S.)
***
.... "O epos, o nome,
a palavra, e também o oráculo, segundo os gregos. O puro
nome é o mero oráculo. Os que não conhecem oráculos,
nunca ouviram vozes, cegados e cegos por uma dimensão única
da palavra em seu estado de história, também não sabem
o que é a poesia. Vide Lukàcs et concomitante caterva, para
quem o mundo de nossos dias já não cabe na poesia, muito
menos na epopéia. A poesia e a epopéia são contemporâneas
dos deuses. E como os deuses estão mortos, o mundo já não
cabe nas expressões mágicas do conhecimento órfico.
A única coisa que um escritor de nosso tempo lograria, segundo esses
filisteus, seria escrever uma novela. A novela - le roman, o romance -
diz explicitamente um deles, creio que Lukàcs, é a epopéia
de nossos tempos, a única epopéia possível no mundo
sem deus(es). Nosso tempo, qualquer tempo que haja cortado o cordão
do umbigo com o mito e a eternidade, é um tempo indigente. Mas se
tiraram tudo ao homem de nossos dias, há uma coisa que permanece
inconfiscável: o epos, o nome, a palavra substantiva, o oráculo.
Depois: onde estão os limites entre a poesia e a prosa no romance
de Dostoiewski, Tolstoi, etc.? Onde estão esses limites até
em reportagens e textos de história, como em Os Sertões e
mesmo em reportagens que às vezes lemos em nossos jornais diários?
Veja algumas linhas do diário de C.G., dos diários militares
de M.T.T. e de discursos de B.M." ( Carta a E. S. e a X. K).
***
...."Despojado de tudo neste século indigente, só te restou
o nome. Então, por que não ousar uma epopéia?
Virgílio queria rasgar a sua. Augusto não deixou, e graças
a isto temos a Eneida. Não deves rasgar. Espera um Augusto ou um
auto-da-fé". (Vozes vindas de E.B. e de V.F.S.)
***
...." O texto está
feito com nomes e nomes e creio na força dos nomes de lugares e
pessoas e coisas. Desde a adolescência guardo de memória alguns
veros de Leopardi, versos épicos às vezes. Parece que a originalidade
de Leopardi está em não ter rompido com a tradição
literária italiana, a tradição da língua de
sua linguagem. Mais ainda: - introduziu nela modulações poéticas
e outros horizontes de significação. O uso de arcaísmos
ou de versos de outros poetas introduz em seu canto uma espécie
de es-ex-tranhamento, que contribui para ampliar certos tons fantasmagóricos,
oníricos, de arcanos mundos alcançados só pela poesia
ou pela mística. (A mística é a poesia da fronteira
entre o homem e o anjo). Há em Leopardi uma atenção,
uma tendência para a reconstrução incessante do gesto
arcaico e novo de re-começar, rastrear as inesperadas correspondências
e semelhanças que o tempo acredita ter apagado" (De cartas
a G. a E. e a D.F.S).
***
...."Li, recentemente,
nalguma revista inglesa, que um crítico, seguramente algum profissional
da literatura acadêmica, sem lugar a ocupar na história da
literatura, acusa Eliot de ter-se apropriado de versos inteiros de Shakespeare.
E Anthony Burgess descobriu que páginas e páginas de "Murder
in the Cathedral" são verbatim - literalmente - copiadas de Sherlock
Holmes - Conan Doyle - em The Sign of the Four. Heidegger perguntaria:
Was ist Dchtung? Respondo: a poesia é isto. A arte da ressurreição,
como as colagens de figuras e recortes de jornal nas obras da pintura,
postas em voga sobretudo pelo surrealismo". (Cartas a E.S., P.B. e I.S.T.).
***
...."Dou por entendido
que o poema épico escrito em nossos dias pode e deve ser feito também
de "collages". Toda obra de arte é feita de "collages". As formas
sào repetidas e as novas formas que fazemos são um espelho,
um contraponto de formas anteriroes. Fazemos uma forma nova para operar
a re-surreição de formas defuntas. Este é o poeta:
o taumaturgo das ressureições. Homero re-surge e ressuscita
sempre. Em Virgílio, em Dante, em Camões, em Hoelderlin,
em Shakespeare, em Rimbaud, em Baudelaire, em Ezra Pound. E em Dom Luís
de Góngora y Argote. E alguns outros. Não muitos. Apenas
na "Kleine Kapelle" - a petite chapelle - a capela de porta estreita -
avistada por um deles: Goethe. E Góngora nos ressuscita um pouco
- ou muito - a todos, no reino da metáfora". (De cartas a N. L.,
a G. I., a E. S. e a E. B.)
***
P.S. 1 - a E. S., e A. B.,
D.M. e A.C.S. ..... "De repente me vem à lembrança que o
século de D. Manuel, o Venturoso, com a descoberta do Brasil e as
grandes navegações bouleversou a arquitetura e o ofício
- oficina - de todas as artes não apenas em Portugal: na Europa
inteira. A partir de uma arquitetura nova: o chamado estilo manuelino.
A transição do gótico ao barroco. Alguns o chamam
o "gótico manuelino". Outros dizem o "barroco manuelino". A literatura
portuguesa da época, dos Lusíadas aos cronistas e ao Padre
Antônio Vieira, é uma literatura barroco-manuelina. Também
a pouca música que resta. E a pintura e a escultura, sempre contígua
à arquitetura, cheia de presenças repetidas, os animais exóticos,
as frutas exóticas dos países novos, os santos, os anjos
com caras de príncipes hindus, de índios da América,
as negras calipígias da África. E a cordoalha, as velas,
os mastros, as caravelas inteiras que aparecem em todas as catedrais e
castelos portugueses, os utensílios de guerras e viagens, da Batalha
aos Jerônimos a Alcobaça, aos vultos bíblicos de pedra
do patamar da Igreja de Bom Jesus do Monte, estudiosamente copiado
pelo Aleijadinho na pedra-sabão e no cedro, de seus profetas e apóstolos
do adro e das capelas que copiaram até o nome - do Bom Jesus - em
Congonhas do Campo. Será lícito ao poeta repetir em versos,
500 anos depois, uma linguagem elementar de melodias e riscos manuelinos?
Não sei. Mas é possível que estes cantares pisem e
repisem rastros manuelinos. Saíram assim. Talvez me tenham faltado
tempo, engenho e arte para a suprema canonização manuelina
alcançada por Matisse e seus arabescos. Vide Fédier".
***
P.S.2 - De carta de
E. S. .... "Deves lembra-te de que o Canto XVIII da Ilíada - talvez
o mais musical de todos, onde se incorporam as "metáforas", como
filhas do mar, é considerado pelos críticos acadêmicos
de todos os tempos ( não têm acesso ao puro Homero) como uma
colagem de interpolações, no seio de um texto inexistente.
Não sabem que as armas de Heitor têm mais séculos que
um Picasso. Ora, se tudo é interpolação, nada é
interpolação. O "Cântico dos Cânticos", que os
eruditos datam entre o século X ou XI a.C., nove séculos
mais tarde seria todo um "mosaico de interpolações". O Ulisses
de Joyce é isto. Há pessoas que não sabem sair do
círculo de giz da crítica acadêmica. Felizmente, há
os que sabem morar na dislexia creadora".
***
P.S. 3 - a G.I., a E.S. a
N.L. a E. e a R.Y .... "Os anjos os querubins de Ezequiel ou os serafins
de Isaías têm, como viventes da cidade celeste, uma única
função: cantar, incessantemente cantar a louvação
de Deus, diante do Trono. (Veja o belo Tratado sobre os Anjos, de Petersen,
creio que um dos mais belos livros escritos por homem que mamou em peito
de mulher). A louvação de Deus. A louvação
é imanente ao mundo eterno onde Ele reina. A louvação
é repetida dia e noite, nos dias e noites da eternidade. E a palavra
da louvação é uma só. É o Trisagion
infinito, policórdico em seu monocórdio: "Sanctus, Sanctus,
Sanctus".
***
P.S. 4 - de E.S. ...." Nosso
querido François (n.a.-François Fédier, filósofo
francês) ao ouvir a ária de Gluck - "Eu perdi a minha Eurídice",
lembrou, com seus olhos azuis cheios de lágrimas, que o amor e todas
as esperanças do ser humano - do homem propriamente dito - vêm,
segundo o poeta grego, do sopro que deixamos sair do peito, isto é,
da voz humana, da palavra. Esse sopro, repetido incessantemente,
é sempre o mesmo e o sopro seguinte é sempre a ressurreição
do sopro extinto".
***
P.S. 5 - (Em carta a E.)....
Em meu velho convento de religiosos holandeses, cantava-se, em coro, nos
almoços de festa, uma antiga canção que se repete
desde séculos, com palavras em várias línguas, mas
composta apenas de quatro verbos, que voltam e voltam e voltam, não
"ad nauseam", mas "ad gaudium", "ad laetitiam", "ad orgasmum", o orgasmo
agostiniano do gaudium cum pulchritudine, gaudium cum veritate, o gozo
na beleza da verdade, o gozo com a beleza, o gozo da beleza".
***
P.S. 6 ...."A intertemporalidade
e a interespacialidade são a coisa da poesia. O poeta é o
taumaturgo, o diábolos, o saltimbanco que atravessa as paredes e
os séculos. Não é o fingidor, Fernando, pois só
finge quando finge que está fingindo. Os outros, os críticos
acadêmicos, vivem no estrito mundo tri-dimensional. Não conhecem
as surpresas da quarta, da quinta, da milésima dimensão das
coisas, dos lugares e das pessoas. Do poliedro universal. Etc. Répétez,
répétez sans cesse, le nouveau viendra au galop. Mas pergunta
Kierkegaard - la répétitition, est-elle possible? - Sim,
mein Herr, mas só para o poeta. Acho que esta é a conclusão,
senão explícita, de todo modo evidente, no Tratado da Repetição.
Só há uma forma boa de gerar um ser novo no ventre de uma
fêmea: repetir o ato imemorial de Adão em cima de Eva, com
um movimento entre a cintura e as ancas. O resto é inseminação
artificial. A repetição gera o novo.Etc." (Em carta antiga
a J.F.)
***
P.S 7 ...."Kavafis. Os
poetas e críticos que melhor leram Kavafis levantam seu DNA épico-lírico.
Anotam, quase em cada poema os ecos de outros poemas. É a iluminação
de um poema por outro. A creação poética toma corpo
em planos sucessivos. Na obra densa, pacientemente amadurecida, a leitura
de cada poema se ilumina, aqui e ali, pela lembrança de um título,
de um parêntese, de uma pontuação, de uma disposição
linear, de qualquer expressão já formulada em outro poema.
Há uma prestigiosa memória interna na própria obra
gráfica, como um semáforo na vida da obra poética.
Todos os poemas de um vero poeta como Kavafis estão estreitamente
concatenados entre si, um completa o outro, cada um separado e todos juntos
em sua obra.
Mesmo numa poesia como a
de Kavafis, acontecida em diversos ciclos - o destino, a fatalidade, a
exaltação do hedonismo, o esplendor e a decadência
do mundo helenístico - há uma trama de referências
cruzadas, a volta de outros poemas, do autor ou de textos antigos, o reaparecimento
- anastasis - ressurreição - de personagens e de acontecimentos
da história grega, dos epitáfios de Alexandria. Há
um sistema arterial no corpus canônico em que se circulam todos os
poemas. A propósito disto dizia o poeta Yorgos Seferis: - "minha
impressão pessoal é de que, a partir de um determinado momento,
a obra kavafiana deve ser lida e considerada não como uma série
de poemas separados, mas como um único poema em curso - um "work
program", como usava Joyce - que só termina com a morte. Essa unidade
na obra de um poeta é sua graça. Gratia sua. Sua Caris.
La grâce.
Na intra-textualidade e
inter-textualdiade de Kavafis: restituições de textos, menções
de nomes, lugares, datas, acontecimentos, citações de títulos
e fragmentos de livros, epitáfios, inscrições, moedas,
tradições orais - como lembra Miguel Castillo. Digamos que
é um privilégio, Danai, nascer grego, em qualquer parte da
Magna Grécia, falando grego. Mas Derek Walcott, um negro poeta,
nasceu falando inglês e a língua crioula de sua ilha do Caribe
inglês, e escreveu seu OMEROS, e é do mesmo sangue, da mesma
raça poética de Kavafis, o alexandrino". ( De carta
a D. S. com cópias para X.K., G., T., e P.R.F., no reino melhor
do Dante, com E. e N. e os outros).
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