Gustavo de Almeida
Ilustre passageiro da ponte aérea
31.12.2005
Marcelo Mirisola lança romance denso mas
que peca pela apatia de seus personagens
Joana a contragosto
Marcelo Mirisola
Record,
192 páginas
R$ 27,90
Alguns escritores
lavam a roupa suja em público, como os ícones da geração beat John
Fante, Charles Bukowski e, anteriormente, Nelson Algren (Um passeio
pelo lado selvagem). Outros, como o paulista Marcelo Mirisola, se
ressentem da falta de um tanque de lavar roupa - em suma, sentem
falta da vida comum para atingirem de verdade o coração do homem
médio. Como apregoou certa vez Aldous Huxley em seu Contraponto,
tentam ser mais do que um simples homem e acabam sendo menos. Esta é
a impressão que nos passa o até interessante romance Joana a
contragosto, lançado no mês passado pelo sr. Mirisola e alçado à
condição de masterpiece por alguns cronistas e ditos especialistas
em literatura. O personagem M.M., autor de ''cinco livros de
sucesso'', poderia ser na verdade - e no máximo - um coadjuvante de
O Estrangeiro, de Camus - papel, aliás, melhor exercido pelo autor.
Afinal, bebe cerveja de garrafa no Lamas, bar onde há muitas décadas
só tem chope (e dos melhores). E, ao pegar um Copacabana-Leblon na
Barata Ribeiro, diz que vê a Praça Serzedelo Corrêa, ''onde Clarice
Lispector dava milho aos pombos''. Se fosse mais atento, o autor
perceberia que a dita praça, além de ficar no outro lado, na Nossa
Senhora de Copacabana, ainda abrigou um dia o corpo esquecido do
mestre João Antônio, este sim especialista nos assuntos no qual
tanto M.M. quanto Mirisola tentam obter o PhD: a desilusão, a
frustração amorosa, o niilismo urbano e a despedida.
Na orelha do livro,
o resenhista afirma que o último parágrafo de Joana a contragosto é
''provavelmente o mais belo da prosa brasileira dos últimos anos''.
Fora as nuvens de magnésia bisurada em torno do Cristo e pelo choro
por Tom e Vinícius de que fala o autor, nada de novo - John Fante já
havia dado as costas ao deserto também pela desilusão amorosa em
Pergunte ao pó, de 1939, em tom de despedida. Mas era por Camilla
Lopez, a linda mexicana com seus malditos huaraches, e não por
Joana, que pelo tom afirmado o livro inteiro pelo personagem M.M.,
mais parece ter participado de um ritual de masturbação mútua.
Este talvez seja o
pecado principal de Joana a contragosto: em um mundo de personagens
femininas cada vez mais densas e exploradas, a musa do M.M. parece
uma pessoa perdida entre os brinquedos da puberdade e as tatuagens
fake da adolescência. Como nos escreveu certa vez Roberto Freire (o
psicanalista, não o político), ''amor por amor, para que não haja
amor''. A crise entre Joana e o personagem principal parece
realmente inventada, feita de raspas e restos. Alguma coisa como ''o
dinheiro do meu pai me sufoca'' que se vê em personagens revoltados
de novelas das oito - Felipe Camargo fez igualzinho há uns 15 anos,
como filho de Renato Vilar em Roda de Fogo.
O estilo de Mirisola
é correto e bem definido, apesar do excesso de palavrões gratuitos.
''Pessoas que tocam punheta para Fátima Bernardes em reportagens
natalinas'' parece uma frase desnecessária e feita apenas para
chocar. O efeito para o livro, no entanto, é o de um arroto em
almoço de família - choca, mas interrompe o assunto por segundos.
Mas sejamos justos: Mirisola acerta mais do que erra - se é que se
chama erro aquilo que apenas consideramos chato. Sua escrita tem
ritmo, musicalidade e é lírica em muitos momentos. ''Assim, tive
nostalgias desabrigadas na cidade que inventei'' é uma forma de
abordar os rancores que convence mesmo o leitor. ''A falta que Joana
me faz é maior que meu abandono'', diz ele em outro momento,
igualmente tocante. Como disse certa vez o Cazuza e o Frejat, só
entende quem namora.
O problema mesmo de
Joana a contragosto é que sua leitura cansa e no frigir dos ovos,
trata-se de uma musa que não é descrita de forma a merecer o livro.
Em outras palavras, Joana não é nenhuma Capitu, apesar de o autor
fazer a comparação em determinado momento. Mirisola talvez tenha
calculado isto - já demonstrou talento em antever o comportamento e
a reação humana em determinado trecho do livro, quando explica por
que, na troca de e-mails entre M.M. e Joana, o homem não pede a foto
do rosto da mulher.
''Eu já havia
comprado todo o pacote mesmo assumindo o risco de ela ser feia de
rosto (...) Sabendo de antemão que ela era muito bonita, sabia mais
por tática do que por intuição. Se eu não pedisse para ver o rosto,
demonstraria confiança e, assim, ela se sentiria mais desejada e
bonita''
A habilidade de
antever reações talvez tenha aparecido até na hora de escolher o
título do livro, Joana a contragosto - o autor talvez tenha
imaginado que alguém pudesse resenhar o livro dizendo que o leu a
contragosto. Não é o caso aqui. Mas o amor dos dois personagens
parece ser assim, apenas para cumprir a obrigação da libido. Vivido
muito mais na racionalização, no cérebro, nas dezenas de citações
(Borges, Caetano, Zezé di Camargo, Nina Simone, Morris Albert, Primo
Levi), no papo de mesa de bar da esquerda festiva - e vivido menos
no corpo e na alma dos possíveis nubentes.
Em suma, se trata de
uma crise existencial vivida a dois mas descrita só por um. Joana,
neste ponto, é muda para o leitor, apesar de algumas frases sobre
sua concepção de sexo anal.
Com um Rio visto por
paulistas como pano de fundo - as referências geográficas erradas,
as fobias excessivas quanto à violência, a citação de Tom & Vinícius
- o livro Joana a contragosto é uma viagem, sim, mas de ponte aérea,
daquelas feitas a trabalho, por obrigação, em que o vizinho de
assento é um cara meio na fossa que resolve contar toda sua vida em
45 minutos. Algo sempre vai divertir, com certeza. Mas quando acaba
é a melhor parte.
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Marcelo Mirisola
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