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Concretismo


 


Apaixonados e furiosos


(in Caderno Mais! - Folha de São Paulo, 08.12.96)
 


Poetas e críticos expõem suas concordâncias e divergências em relação ao movimento
 

Poucos temas na cultura brasileira da segunda metade do século provocam tanta paixão e fúria quanto o concretismo. Projeto fundamental bem-sucedido, projeto fundamental malsucedido, uma farsa, momento que precisa ser avaliado com mais vagar; muitas são as opiniões e posturas. O inegável é que a menção do nome do movimento já implica uma tomada de posição. Nem que seja a de absoluto silêncio.

Ao conversar com diversos críticos literários e poetas, a Folha buscou dar uma amostra desse complexo universo.

Importância e senso político
 

Para João Alexandre Barbosa, professor de teoria literária da USP, "o concretismo é o mais importante movimento surgido no Brasil após o modernismo". De acordo com ele, esta importância se dá em três direções: na poesia, na crítica e na tradução.

Como poetas, diz João Alexandre, eles dão à linguagem poética uma primazia que estava sendo perdida pelo que havia de rarefeito na "geração de 45".

Como tradutores, eles criam um amplo repertório para os jovens interessados em poesia. "Eles estabelecem um cânone e escolhem muito radicalmente alguns autores. É uma escolha importante, porque eles resgatam esses poetas para a língua portuguesa e para a cultura brasileira."

Como críticos, eles são importantes por reavaliar a literatura brasileira. João Alexandre cita, por exemplo, o recente texto de Augusto de Campos sobre Euclides da Cunha (Mais!, 3/11/96).

"É admirável! Ele trata de um Euclides da Cunha absolutamente ausente da historiografia literária tradicional, um Euclides sensível à poeticidade da linguagem. Trata-se certamente de um texto fundamental para qualquer estudo futuro do autor." O estudioso coloca nessa mesma linha a atuação dos autores em relação a Oswald de Andrade, a Sousândrade, a Pedro Kilkerry, entre outros.

"Essa atividade como críticos tem importância à medida que altera a historiografia literária, o que é um traço comum de todas as vanguardas dignas de respeito."

Diferentemente de João Alexandre, que acha que nenhum dos três aspectos se sobressai mais do que os outros, o poeta, crítico e tradutor Nelson Ascher diz que os irmãos Campos e Décio Pignatari foram muito prejudicados pelo próprio trabalho como críticos e tradutores: "A poesia ficou encoberta".

Já para o crítico e escritor Silviano Santiago, entretanto, é a própria importância do concretismo que precisa ser relativizada.

"É inquestionável o valor histórico do movimento. Ele trouxe para uma literatura que esclerosava nas formas canônicas dos anos 30 uma lufada de experimentalismo que fez com que a literatura brasileira nunca mais fosse a mesma. Mas trata-se de um projeto extraordinário que não funcionou, que se transformou num projeto -e digo isso com algumas aspas- provinciano."

De acordo com ele, esse insucesso deve-se à "inabilidade política" dos irmãos Campos e de Décio Pignatari. "Se eles tivessem lido, minimamente, o que Mário de Andrade escreveu nos anos 20, eles poderiam ter feito um trabalho brilhante. O que foi extraordinário se perdeu por falta de senso político: apego em demasia a uma política pessoal, uma incapacidade de ouvir o outro, um exagerado senso do poder literário etc."

Do autor de "Macunaíma", diz Silviano, eles poderiam ter apreendido a extraordinária sensibilidade política. "Quem lê a correspondência de Mário de Andrade com Manuel Bandeira, Drummond e outros percebe isso; percebe como ele se torna, com toda a modéstia e todo o cabotinismo -pois ele era uma mistura das duas coisas-, um divulgador de novas idéias que espanta o fantasma do passado de maneira extraordinária. Eles, por sua vez, têm uma grande capacidade de fazer inimigos."

O clima controverso é inerente à postura de qualquer vanguarda, segundo João Adolfo Hansen, professor de literatura brasileira da USP. "Faz parte da vanguarda produzir escândalo; quando ela acaba, passa a ser parte de um lado mercadológico." Para Hansen, como todo movimento de vanguarda, o concretismo estava destinado a se exaurir. "Ele era muito pontual. Era um movimento fadado a se esgotar, mas era fundamental para o país passar por ele, porque toda experimentação é fundamental."

Francisco Achcar, professor de língua e literatura latina da Universidade de Campinas, concorda que o clima controverso está intrinsecamente ligado à própria constituição de uma vanguarda. "Há um clima irracional de São Paulo x Corinthians em relação ao concretismo. Como todo movimento de vanguarda, ele nasceu muito cercado de propaganda, o que criou uma animosidade desde a época de seu surgimento."

Para o poeta Alexei Bueno, o concretismo, como muitos outros movimentos literários, sempre se organizou de forma sectária.

"Há incompreensões e equívocos terríveis em várias áreas que caracterizam esse aspecto sectário. Ou seja, ele desenvolve um choque natural em relação ao que não segue seu comportamento.

E isso tem dois lados: deles contra os outros e dos outros contra eles."

Um movimento internacional
 

O professor aposentado da USP Boris Schnaiderman destaca a abertura que o concretismo provocou na poesia brasileira. "A poesia concreta foi um fato internacional, e o Brasil teve sua participação em uma posição bem avançada na literatura. Eles foram muito combatidos e continuam sendo, mas são algo muito importante em nossa cultura. Esse clima envolve o movimento porque o concretismo mexeu com muita coisa, subverteu muita coisa."

Para Arthur Nestrovski, professor de literatura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), escola onde Haroldo de Campos deu aulas, o concretismo foi fundamental para internacionalizar o cenário da crítica e da poesia brasileira.

Mas ele acrescenta: "É preciso diferenciar, porém, o que é a contribuição dos poetas tidos como concretos da poesia concreta em si. A importância deles é muito maior do que a do concretismo".

A morte do verso
 

O fim do ciclo histórico do verso, decretado pela teoria da poesia concreta à época do início do movimento é contestado pelo poeta Armando Freitas Filho.

"Eu achava isso estranho. Como poeta aprendiz e como leitor, achava um absurdo, um contra-senso, pois o que de melhor se fazia na poesia brasileira se fazia em verso. Esse decreto me parecia um paradoxo."

Achcar também considera a questão problemática. "Muita gente levou isso a sério. Acontece que, a partir dos anos 60, todos escrevem em verso, até Augusto de Campos. O curioso é que eles não voltaram a falar disso."

O poeta Bruno Tolentino vai além e questiona a própria idéia de uma "revolução" nas letras brasileiras nos anos 50.

"É justamente quando a literatura do país atinge seu apogeu, com Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Carlos Drummond, João Cabral. Estavam todos no auge. Nunca, na história do Brasil, houve um momento tão rico como os anos 30, 40 e 50. Quando a escrita do pensamento finalmente se faz nesse país, já estamos falando em linguagem universal, eles vêm querendo fazer uma revolução."

Posição oposta adota Ascher, que vê os poetas concretos em linha de continuidade com o modernismo. "Já está na hora de apreciar o fenômeno de um ponto de vista diferente do dos fundadores: eles se apresentaram como ruptura, mas são continuidade. São uma terceira geração modernista. Foram essenciais na retomada da primeira e, de alguma maneira, procuraram dar bases teóricas ao que era intuitivo nela."

Já o poeta Regis Bonvicino considera que eles foram inovadores, mas que "resistem a qualquer projeto de renovação diverso ao deles". "O concretismo se coloca como a única tradição do novo, quando há várias tradições do novo. Eles são elos numa cadeia de transformação, e não a própria cadeia. Apesar de terem uma verdadeira importância, eles superestimam a própria importância."

Cânone, tradição e tradução
 

Para Hansen, os poetas concretos radicalizaram um projeto moderno na constituição de uma tradição e acabaram por constituir um outro cânone.

Ascher considera este um papel fundamental desempenhado por eles. "Eles fizeram um trabalho de divulgação de autores novos e velhos, mudaram o padrão literário de tradução. "Panaroma do Finnegans Wake", a tradução feita por Augusto e Haroldo de Campos, é a grande obra na prosa brasileira depois de Guimarães Rosa. É, na verdade, a única alternativa a Rosa."

A própria constituição do cânone é posta em questão, por outro lado, por Bonvicino. "Eles criaram um contracânone que cada vez mais ocupa o lugar de centro. Esse contracânone é instigante enquanto referência, e não enquanto norma."

De acordo com Tolentino, protagonista de uma recente polêmica com Augusto de Campos sobre uma tradução do americano Hart Crane, "é evidente que eles têm uma tradução ou outra que presta". Mas acrescenta: "Só que até relógio parado acerta duas vezes por dia".

Nestrovski pensa o contrário. E exemplifica com Haroldo de Campos: "Ninguém entregou um presente de poesia como ele.

As pessoas têm pouca boa-fé ao não reconhecer isso".

Legado e influência
 

O aspecto crítico é o maior legado do movimento de acordo com Bueno. Houve, para ele, uma sábia valorização dos aspectos formais, uma teoria da tradução que teve muita influência e a divulgação no Brasil de autores poucos conhecidos.

Silviano, por sua vez, faz um comentário sucinto para mostrar o que pensa sobre o legado do concretismo: "A poesia brasileira após o movimento é exatamente a rejeição dele".

Mais do que rejeitar, Freitas Filho quase que desconsidera a própria possibilidade de existir uma descendência, já que supõe que a influência da poesia concreta é "pouco generosa". "Uma literatura se faz com discípulos. Como se pode escrever influenciado por aquela greve de fome sem causa sem ser igual àquilo, sem ser um epígono de chute mais fraco? A descendência deles é pequena e fraca."

Por outro lado, para Alexandre Barbosa, a existência do concretismo foi muito positiva para a cultura brasileira, deixando traços até em certas formulações de linguagem da publicidade.

Schnaiderman destaca um outro aspecto. De acordo com ele, o concretismo marcou um avanço em direção a uma arte multimídia, em que a poesia passa a ter uma relação imediata com as outras artes. "Algo do que foi feito naquela época não podia ter um aproveitamento tão grande como está tendo hoje em dia com as tecnologias de ponta."


 

 

 


 

24/01/2007