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Concretismo


 


Os nervos da nova anatomia


(in Caderno Mais! - Folha de São Paulo, 08.12.96)
 


O editor do caderno Mais! me convenceu que não deveria recusar o convite de participar da comemoração dos 40 anos do concretismo, mesmo que, escrevendo no estrangeiro, não tenha acesso à bibliografia indispensável. Estou pois obrigado a remeter-lhe meras notas de trabalho.
 

No ambiente cultural brasileiro, o concretismo tem sido um divisor de águas. Seus não-simpatizantes foram e são muitos. Dos mais diversos calibres, qualquer denominador comum lhes seria impróprio. Ademais a falta do espírito de discussão cria, entre nós, unanimidades, positiva e negativa, que excluem a complexidade do fenômeno. O saldo é neste aspecto favorável ao concretismo: os que portam a marca recebida -Sebastião Uchoa Leite, Duda Machado, Carlito Azevedo, Antônio Risério, Carlos Ávila, Nelson Ascher- concebem obras tão diversas que, implicitamente, declaram a complexidade com que dialogam. Não será tempo de aprendermos com eles?

É o que tento por perguntas quase brutais: (a) a poética inicial dos poetas concretos era concreta? (b) A teorização da fase heróica do movimento permanece válida para a produção mais recente de seus fundadores? (c) Até que ponto os concretos permanecem concretistas?

Sem duvidar que o acesso ao material que ora não tenho permita melhor resposta, a primeira pergunta recebe um quase absoluto não. A seguinte passagem, por ex., abertura de "A Morte do Infante" (1952) de Décio Pignatari -"Finalmente/ me vereis apascentando um rebanho de sepulcros/ sobre a última colina do derradeiro bairro/ entre o ocaso da luz e o fim dos grandes gestos"- por sua dicção elevada, seu tom simbólico e melódico-narrativo nada indica da "aventura planificada" a que o próprio Décio se referia em depoimento de 1950: "Todo poema autêntico é uma aventura -uma aventura planificada".

Essa defesa da autonomia construtiva do poema, contra o intuitivismo tradicional, chocava-se com a prática daquele Décio, que tinha por matéria-prima as expressões do eu -"Não sou cão, não sou gente- sou Eu" ("O Lobisomem"). Ainda quando passagens de seu primeiro livro, "Carrossel" (1950) contrariem o "euísmo", a dicção do verso amplo e narrativo, melódico e aliterante, nutrido de sintagmas "nobres" -"gumes frígidos de prata", "acendamos a rosa sobre o linho", "seus clarins de cimitarras d'oiro" ("Rosa d'amigos")- não correspondia ao salto já anunciado. Em vez da exploração plástico-visual do perto, o poema se mantinha na tradição do canto do remoto "(...) Pousam/ as flores, como se à distância,/ saudoso as devorasse o latido de um cão".

Menos pela centralidade do eu do que por idêntica escolha da dicção elevada, alçada por palavras "poéticas" o mesmo se observa no primeiro Haroldo de Campos. Veja-se o trecho da "Ciropédia ou a Educação do Príncipe" (1952): "(...) O Príncipe é um operário do azul: de suas mãos edifica infância as/ galas do cristal e doura o andaime das colméias: paz de câmaras ardentes".

Em Augusto, em troca, é mais difícil a identificação simples. Mas o passo melódico, as palavras "poéticas", o andamento de um simbolismo classicizado -"Ó jardins, grandes de ternura,/ Dissimulado céu sob meus pés,/ Relaxai vosso abraço, os cravos desprendei,/ Se sois bastante verdes/ Caminhai" ("Poema de Retorno")- apontam no mesmo rumo. Talvez porque essa dicção já fosse corroída pela ironia dissonante -"Solange Sohl existe? É uma só?/ Ou é um grupo de vidros combinados? Uma lenda/ Medieval que vestes de neurose?"- é em Augusto que melhor se antecipa a passagem da linguagem exploradora de consonâncias -responsável pela qualidade do poema "Ter penetrado o grande corpo curvo" (em "Os Sentidos Sentidos", 1951-1952)- para a de timbres e cores.

É da consciência da exaustão de certo fazer poético que nasce o concretismo. Ele representa uma quebra da tradição poética por deixar a casa demasiado habitada por palavras ritualizadas, pela dicção grave e a mentação esfumada. O rompimento primeiro se dá por declarações e manifestos. Seu princípio nuclear se enuncia em artigo de 1956: a libertação "do agrilhoamento formal sintático-silogístico".

Passando à segunda questão, antes se acentuem alguns nervos da nova anatomia. O mais arriscado concerne à afirmação da poesia concreta como "superação". Eis a abertura do "Plano Piloto": "poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural".

O surpreendente seria que tal assertiva não provocasse impacto e irritação. A primeira razão disso é imediata: entre nós, a poesia, e a literatura em geral, continuam tomadas como atividades "intuitivas", a que faria mal o trabalho da inteligência. A segunda: a quase absoluta ausência entre nós de inventores de dimensão crítica. É certo que, no final de década de 1950, a obra de nosso maior poeta de virtualidade crítica, João Cabral, já era reconhecida. Mas uma coisa era admitir sua convivência com a tradição dos bons sentimentos ou mesmo com poéticas de qualidade divergentes, outra era aceitar a radicalidade da nova proposta.

Como toda vanguarda, o concretismo radicalizava uma visão parcial. Encarecendo procedimentos de Pound, Joyce, Cummings e Mallarmé, criava um panteão restrito. A irritação decorrente só aumentava com as revisões propostas do cânone nacional: a redescoberta de Sousândrade, seguida pelas de Oswald e Qorpo-Santo, afetavam a pasmaceira acadêmica. De sua parte, a poesia-de-mimeógrafo dos anos 70 revelava novos inimigos.

Assim o concretismo passou a ter contra si os "humanistas" -tanto de direita como de esquerda-, a academia -tanto a de orientação estilística como a sociológica- e os poetas jovens que redescobriam o poema-piada. Hoje, com o panorama um tanto diverso -a academia continua hostil, porém suas preocupações são mais imediatas, a poesia marginal foi substituída pelos ofícios "globais" e a maioria dos "humanistas", convertendo-se ao neoliberalismo, tem horror à literatura- cabe perguntar: em que tem consistido a lição dos concretos?

Dentro de sua formulação "heróica", o salto proposto supunha que trilhas abertas por alguns inventores fossem respaldadas por ciências ou operadores científicos (a gestalt, a estrutura, a semiótica). Em sua feição clássica, o concretismo sofria da excessiva valorização do científico. A prática posterior de Haroldo e de Augusto o mostra.

Se as traduções dos provençais, de Valéry, de Rimbaud e Rilke por Augusto exibem seu reinvestimento no verso, as transcriações de textos bíblicos por Haroldo manifestam uma busca de recuperação de um remoto legado poético a que, por si, o espírito científico permanece surdo. Se o concretismo ressaltava a exploração "verbivocovisual" do espaço, na hora presente os concretos parecem enfatizar o espaço interno, a multiformação significativa da linguagem poética, contra a "razão aquosa" (F. Schlegel) da linguagem instrumental.

A produção concreta assim se torna tanto um aprofundamento como uma remodelação da antiga proposta: já não há sentido em falar em superação da forma do verso, mesmo porque o desmantelo da lógica proposicional linear nem implica o abandono de meios materialmente lineares, nem se confunde com a atualização das virtualidades espaciais.



Luiz Costa Lima é crítico e professor de história social da cultura na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). É autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros.
 

 

 


 

24/01/2007