Hildeberto Barbosa Filho
A metáfora predicativa de
Francisco Carvalho
[in Diário do Nordeste,
14.07.2002]
Nova coletânea de poemas de Francisco
Carvalho. Publicada pela Universidade Federal do Ceará, em 2002, O
Silêncio é uma Figura Geométrica retorna e amplia, por um lado,
certos recursos retóricos e estilísticos, e por outro, alguns
motivos temáticos que vêm se cristalizando ao longo de uma vasta
obra poética. Constitui, portanto, uma espécie de epítome, isto é,
uma síntese de sua poesia, como bem observa o professor Luiz Tavares
Júnior, em estudo introdutório.
Para tatear a pele de motivações como
o tempo, o amor, a morte, o silêncio e a linguagem, entre outras que
permeiam a sua lírica, o poeta cearense, sem descuidar de
estratégias discursivas diferentes, procura realçar, conforme já
sinaliza o próprio título do livro, a chamada metáfora de teor
predicativo, ou seja, aquela que põe em relação semântica um
comparante e um comparado a partir do elo sintático de um verbo de
ligação. O modelo básico se formaliza, de logo, numa retórica da
conceituação que visa, em função da subjetiva visão poética, apalpar
os aspectos intangíveis e insondáveis da realidade, elaborando,
assim, não somente um alargamento perspectivo do real, mas sobretudo
a criação estética de uma supra-realidade moldada na tessitura da
linguagem.
Os motivos são como que explorados em
suas camadas significativas, por intermédio de uma sintaxe de
caráter expansivo que vai modulando, dentro evidentemente da
cadência do verso, a cartografia das imagens, responsável, ao fim,
pela expressão figurativa dos motivos abordados. As funções
referencial, emotiva e lúdica dos procedimentos lingüísticos
interagem sob a presidência aglutinadora da função poética, o que
faz da dicção de Francisco Carvalho, neste e em tantos outros
momentos, uma caleidoscópica geografia de imagens oníricas e
visionárias a materializarem uma verdadeira “poética do devaneio”,
como diria Gaston Bachelard.
O paradigma do título: O Silêncio é
uma Figura Geométrica, na sua arquitetura oracional, cataliza uma
espécie de idéia ou de imagem primeira, germinal, irradiadora, da
qual emerge, vezes por um processo de enumeração caótica, a ciranda
das imagens outras que perfazem o corpo dos poemas. Vejamos um
exemplo na página 46, tendo “Deus” como núcleo temático:
“Deus é algo
incandescente
sou cria do espantalho
esse fauno de palha.
Deus é o centro de todas
as simetrias do universo
e de suas abóbadas.
Deus é o que trespassa
o corpo e seus labirintos.
O vértice do átomo.
Deus é o átomo.
O princípio de todas
as velocidades da alma”. |
O verbo de ligação pode vir explícito
ou em zeugma na típica relação predicativa, mas pode também
apresentar-se no âmbito de uma predicação verbal, com estruturas
transitivas ou intransitivas, o que nos parece uma variação
característica do padrão originário. Assim, podemos deparar
expansões como estas, na página 58:
“(...) A pedra é um
hipotótamo
de lodo que flutua nas águas do rio.
(...) A pedra e a placenta
de um bólide do tempo do apocalipse
quilha e âncora das naus e utopias de Ulisses”; |
Ou então variáveis desse tipo, com
motivação metalingüística, no poema Hóspede do Tempo:
“(...) O poeta é um
exilado dentro de si mesmo.(...)
O poeta sai do corpo e entra na concha da alma.
Sabe que não precisa estar o tempo todo
bolinando as coxas da metafísica”. |
Ora, tal técnica de construção
literária agencia, de maneira visível, a componente fanopéica da
linguagem a par, contudo, de um paralelo processo logopéico,
correlacionando perfeitamente idéia e imagem enquanto traço seminal
de uma forma poética.
Em Francisco Carvalho a imagem serve à
idéia e a idéia se expande em imagem. Tudo, ainda, no espaço de uma
pontuação melódica e rítmica que faz do poema uma caixa acústica, um
artefato textual essencialmente lúdico, imagético e conceitual.
Não é comum encontrarmos expressão
poética com este rigoroso equilíbrio e com esta rara singularidade.
Se a fonte discursiva está naquele tipo de metáfora e cujo tronco se
apegam os paralelismos sintáticos, as anáforas, as alterações, as
rimas funcionais, enfim, todos os torneios figurativos, o resultado
substancial, a idéia nova, o conteúdo conceitual, enfim, a forma
estética, autônoma e acabada, tende a abrir o campo da percepção, a
estimular propriedades da fantasia e a elastecer os limites do
conhecimento.
Com isto queremos dizer que a metáfora
predicativa, em suas variadas modulações, transcende, na poesia de
Francisco Carvalho, as fronteiras do ludismo, constituindo-se, na
verdade, em um método de leitura, de análise, de interpretação e de
descoberta do real, não o real como ele é ou parece ser, mas
efetivamente o real como poderia ser. Do real possível. Do real
versossímil, recriado no movimento estético da linguagem.
Lendo-se a poesia do autor de Barca
dos Sentidos (1989), vive-se a estranha, (estranha, de
estranhamento) experiência de uma renovação da sensibilidade e da
imaginação. O amor, a morte, a poesia, o tempo, a fauna, a flora,
Deus, enfim, todas as possibilidades temáticas são convocadas pelo
apelo da percepção poética e reinseridas no plano da consciência
cognitiva sob a regência de um olhar epifânico que, para referirmos
Ezra Pound, em ABC da Literatura, faz do poema “linguagem carregada
de significados até o máximo grau possível”.
A metáfora predicativa, em O Silêncio
é uma Figura Geométrica, evidencia a dialética nuclear da poesia de
Francisco Carvalho, traduzida no intercâmbio permanente de Eros e
Tanatos. Este manifesto nas inelutáveis tonalidades do tempo, na
metafísica do perecimento das coisas e dos seres e na presença
irremovível das imagens da morte enquanto vetores recorrentes de uma
visão poética; aquele, por sua vez, erigido em flama vital e em
energia celebratória das experiências humanas que promovem a busca
da palavra enquanto atitude poética por excelência.
O elemento formal se une, portanto,
aos ingredientes semânticos num processo de correspondência lógica,
numa interrelação estética, numa configuração isomórfica que
responde pela coesão e coerência da expressão lírica de Francisco
Carvalho. Coesão e coerência que, ostentadas, em seus múltiplos
predicados, desde Cristal da Memória (1955) até A Concha e o Rumor
(2000), restabelece, aqui, o quanto súmula de um ofício, de um
ofício que é muito mais entrega e devoção, poeticamente amadurecido
e esteticamente plenificado.
Leia a obra de Francisco
Carvalho
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