Hildeberto Barbosa Filho
A melodia poética de Aníbal Beça
Banda da asa, publicado pela Sete
Letras, em 1998, reúne os poemas do
amazonense de Manaus, Aníbal Beça, desde a produção mais recente de
Ter/na colheita, passando por Convite frugal (1966), pelos Filhos da
várzea (1984) e Itinerário poético da noite desmedida à mínima
fratura (1987), até o premiado pela Nestlé, Suíte para os habitantes
da noite (1995).
Nos seus 55 anos, portanto em fase de
plena vigência e já de confirmação em termos literários, Aníbal Beça
é autor de uma obra poética vasta e variada, quer no território dos
procedimentos técnico-literários e estilísticos, quer nas latitudes
temáticas e motivadoras, a par, não obstante, da componente
mágico-regional de fundo amazonense, que lhe lastreia
subterraneamente a cosmovisão lírica, acentuando-lhe, assim, para
além da maestria estética, de per si já demonstrada na elaboração do
verso, toda uma particularidade expressiva, antropológica e
cultural.
Caleidoscópica, poliédrica, plural em
suas tensões e extensões, sua poesia possibilita muitas portas de
entrada a sinalizarem para muitas varandas de saída, seja pelo viés
de uma leitura meramente didático-racional, onde se verificassem
sobretudo o poder da técnica e a desenvoltura dos processos formais,
seja por uma abordagem de cariz afetivo-imaginário, onde, a seu
turno, pudéssemos indagar das mensagens abertas que se desenham na
coreografia das imagens e se cadenciam na pauta rutilante do ritmo e
da melodia.
Mesmo que se possa aferir notas de
alguma maturação na concepção da linguagem poética dos primeiros
para o último livro, percebe-se, em Aníbal Beça, aquele espírito de
crítica a presidir a textura da composição (nele particularmente
composição, porque o músico que é invade o poeta!), demandando o
controle estético da experiência lírica, tanto nos poemas de teor
minimalista, a exemplo de "Mesa fome", "Trova látex", "Trote rio",
"Sino tempo" e "Trova rústica", de Convite frugal, quanto no
espraiado da expressão, em textos como "Verde que se faz verde
primícia", "Presságio de boas novas na várzea", "Canto a
continuidade perdida" e tantos outros de Filhos da várzea.
O traço dessa atitude crítica, que se
evidencia na modulação da métrica e dos ritmos, assim como na
sondagem de todas as camadas da linguagem poética, a camada fônica
por excelência, sem descartar, contudo, o peso das camadas
semânticas, óticas e morfossintáticas, prossegue, enquanto medida do
seu credo poético, pelo Itinerário poético da noite desmedida à
mínima fratura, até se estabelecer, agora como um vetor decisivo de
um poeta que sente, sente... imagina e pensa, pensa na confecção do
poema enquanto qualidade e forma entre formas e qualidades outras,
conforme se pode observar na Suíte para os habitantes da noite.
Sem inclinações axiológicas, diríamos
que essa suíte devolve à poesia sua origem musical, na medida em que
a colhe e recolhe em todas as safras do ritmo, seja o ritmo das
formas (valsa, chorinho, sonata, noturno, canção, bolero, toada,
balada, pavana etc..), seja o ritmo das significações, a remeter
para uma dicção erótica, sensual, mágico, cósmica, atenta, assim, à
essência impalpável das vivências do real.
Ainda que se projete o estranho e belo
mito árabe do louco Majnum que, impedido de ver sua amada Laila (a
noite), abandona as riquezas e o mundo para vagar sozinho no
deserto, de acordo com a última epígrafe da suíte, como também com o
seu Prólogo, queremos acreditar que a organização lírico-musical de
Aníbal Beça, na sua abertura temática, sobretudo polarizada entre
Apolo e Dionísio, Eros e Tanatos, a vida e a morte, tende a
transcender as fronteiras da alegoria, e se fazer escritura - não
simplesmente reescritura de mitos e lendas - da própria criação
poética e verbalização das próprias qualidades musicais dos afetos,
pulsões, idéias e fantasias, tão bem demonstrado, de modo
emblemático, na metalinguagem da Pavana para acompanhamento de
flautas doces e címbalos. Em colunas finas e firmes e sem pontuação,
o eu lírico, nessa pavana, explora e expande o jogo metafórico numa
conceituação de poesia que ultrapassa o lúdico para penetrar no
ôntico e captar, em sua primalidade, a natureza intrínseca da
palavra poética:
“A poesia é uma
borbo-
leta de ions um dado de
libélulas um dedo de
sumaúma um galho de
nuvens na lã da relva
amanhecida uma trave
no aço dos músculos
.......................
(...) Que ela seja
clássica moderna com-
temporânea de vanguar-
da comportada marginal
lírica épica que ela seja
nada e tudo e nada: va-
ral chuva casa alicerce
arcabouço não importa
e nem defini-la compor-
ta se o que reporta é a
fatura do e para o homem
assim como a porta da rua
é a serventia do poema”. |
Outros recortes metalinguísticos
perpassam textos e mais textos como a dizer da seminilidade do
motivo, numa espécie de convocação recorrente àqueles que habitqam a
noite, imagem fértil de tudo aquilo que se faz pura germinação: o
amor, a criação, a poesia.
Adepto de todos os ritmos, íntimo de
todas as formas, consciente de que a poesia é linguagem, mas de que
também é mais que linguagem, A nibal Beça, ao lado de nomes como
Aldisio Filgueiras, Simão Pessoa e Luiz Bacellar, entre outros,
responde pela renovação e continuidade da legítima tradição poética
do Amazonas.
Leia a obra de Anibal Beça
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