Hildeberto Barbosa Filho
Os menores são bem-vindos...
Diz Montaigne, em seus Ensaios:
"Pode-se ser néscio em tudo menos em poesia...".
Tem razão o moralista francês. Na
verdade, não se pode ser ingênuo nem tolo em qualquer forma de
criação literária. E isto deve servir, não somente para o autor, mas
também para o leitor.
O fato, contudo, não elide o exercício
do direito de expressão de quem quer que seja. Montaigne apenas
alerta os incautos com a saudável ironia que lhe é peculiar. Mas
todos, talentosos ou não, maiores ou menores, brilhantes ou
medíocres, originais ou epígonos, todos possuem o direito à palavra
e, por extensão, o direito à palavra poética.
É aquela velha história referida, num
texto qualquer, por Décio Pignatari: não é porque Pelé é rei do
futebol que eu vou deixar de jogar bola. Em outros termos: não é
porque existe um Carlos Drummond de Andrade, um Fernando Pessoa, um
Pablo Neruda, que eu vou deixar de cometer os meus versos. Ora,
também na literatura e na poesia, o sol nasceu para todos.
A propósito dos escritores menores,
vejamos o que diz o mestre, Paulo van Tieghem, em A literatura
comparada: (...) é lendo autores de menor envergadura, e outros até
completamente obscuros, que se descobre tudo que é comum a eles e
aos maiores". Para o mestre, é através do "número imenso de
escritores medíocres e obscuros" que se pode "acompanhar na sua
verdadeira complexidade um movimento ou uma simples agitação
literária".
Fausto Cunha, por sua vez, analisando
o papel do epígono, em O romantismo no Brasil, no capítulo "Epigonismo
e grotesco", defende sua importância dentro da história literária,
na medida em que funciona como "pedra de toque no exame das
originalidades".
Como vemos, os medíocres não são nulos
de todo. Pelo menos, no âmbito da sociologia literária, apresentam
um interesse fundamental.
É neles onde se cristalizam melhor os
elementos mais característicos das tendências poéticas. É nele onde
as influências se revelam mais transparentes e onde os
lugares-comuns do contexto estético terminam por se configurar,
dialeticamente, contudo, sinalizando para as verdadeiras e
autênticas expressões literárias.
Por isso mesmo, é necessário que os
autores menores dêem a sua indispensável contribuição, isso é,
escrevam e publiquem... O sistema literário não subsiste sem eles,
sem as suas obras que, inevitavelmente, servirão à crítica na sua
habitual atividade comparativa.
Como se reconhecer a superioridade de
um Dante Alighieri, de um Luís de Camões, de um Charles Baudelaire,
de um Jorge Luís Borges, de um Wallace Stevens, por exemplo, se não
cotejá-los com figuras menores?
Ora, conclusão: é necessário que os
poetas fracos, epigônicos, diluidores, medíocres, convencionais,
acadêmicos, obscuros, menores, existam. No fundo, suas obras
funcionam como o espelho da boa literatura, da boa poesia. Sua
utilidade histórica e sociológica é mais do que evidente. Não se
pode negá-los.
Não obstante, é preciso, a bem da
verdade crítica, estética e ética ao mesmo tempo, observá-los
justamente no seu devido lugar. Para cada valor, a sua medida, reza
a boa consciência literária. O mais, é salamaleque de salão, incenso
irresponsável à vaidade alheia, hipocrisia social, bajulação,
futilidade...
Estas reflexões me acompanham, quando
me debruço sobre uma vasta vertente da poesia paraibana, dada a
público nos últimos dias.
Quer sejam em antologias, a exemplo de
Fragmentos poéticos, em que constam os poemas classificados no I
Concurso de Poesia da Biblioteca do CAAP, quer seja em obras
individuais, tais como: O verbo amar, de Tânia Rocha Domiciano;
Outono, de Valquíria Lins; Elos, de Geraldo Nogueira Amorim, e
Estalactites do Silêncio, de Germano Rocha, entre outras, a nova
poesia paraibana parece ter optado pelo exercício da fragilidade
estética. Fragilidade estética, todavia, que terá sua importância do
ponto de vista histórico e social. E isto não é pouco, se pesarmos
as coisas de acordo com as exigências do sistema literário.
Salvo uma que raríssima exceção, em
Fragmentos poéticos me encontro com os mais batidos clichês do
lirismo confessional, sentimentalmente epistolar, formalmente pobre.
Ao devaneios ingênuo dos estados d'alma se associam, em geral, uma
linguagem, diria, indigente do ponto de vista poético e a utilização
de recursos técnicos sem qualquer nuance de inventividade. Isto, sem
falar da componente ideológica, no mais das vezes, romanticamente
autoritária, sem ambigüidades, cheia das boas intenções típicas de
uma classe média reconhecidamente falida.
Nos livros, o lirismo outonal de
Valquíria Lins não vai além das metáforas de uso de remoto sabor
romântico, mesmo que a feminilidade do seu eu poético revele alguma
maturidade, se compararmos com a voz, inteiramente ingênua, que
canta os arroubos sentimentais de Tânia Domiciano. Germano Rocha, a
seu turno, faz aquele verso característico de um residual
vanguardista, inflado de honestas intenções sociais, mas sem
qualquer mérito estético no que tange à figuração, à musicalidade e
ao poder inventivo. Geraldo Amorim, em que pese sua formação
literária, revela uma dicção de metáforas convencionais, de clichês
temáticos e de inequívocos apelos confessionais em que a urgência da
expressão pesa mais que a consciência da construção poética.
Inútil ou sem valor este viés da
poesia local? De forma alguma.
Experiências como estas, por mais
paradoxais que sejam, são bem vindas, sobretudo quando se verifica o
acervo literário do ponto de vista crítico e histórico. Menores, não
naquele sentido da falsa modéstia de Manuel Bandeira, estas
experiências, a bem da verdade, se não são rigorosamente estéticas,
contribuem, no entanto, para o discernimento do valor essencial de
uma autêntica estesia.
Para me valer ainda da alusão
futebolística, todos sabemos que um time não joga somente com as
estrelas, e sim com onze. O conjunto pois, é fundamental. E
literatura é conjunto. E sistema poético é conjunto. E nesse
conjunto deve haver lugar para os maiores e para os menores.
Ao conjunto da poesia paraibana,
pertence, em posição icônica, Augusto dos Anjos, como pertence, por
exemplo, um epígono menor, como o poetas Hélio Chaves e tantos
outros. Na atualidade, o conjunto se alarga, por exemplo, com a
presença menor de uma Tânia Rocha Domiciano, mas também com a
maioridade do poetas José Antônio Assunção.
(Coluna Convivência Crítica, do Jornal "O
Norte", de 01/03/98, domingo, Caderno Show, página 6)
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