Hélio Pólvora
Triunfo
da ficção
28.08.1999
Com muitos
episódios memoráveis, a crônica histórica de Ilhéus apresenta graves
lacunas. Culpa dos historiadores, que até aqui se concentraram na
história de Salvador e Recôncavo, com incursões a Canudos
(repetidas) e Chapada (ocasionais). Culpa dos que deviam zelar pela
guarda de documentos.
As duas revoltas
negras de Rio do Engenho, engenho de açúcar do século 18, e a
tentativa de um terceiro levante, fascinam e fazem pensar, porque,
sob certos aspectos, se anteciparam às lutas pela cidadania na
Revolução Francesa e aos princípios democráticos da Revolução
Americana. Mas pouco se sabe até hoje do que de fato ocorreu
naquelas senzalas ilheenses. E a Batalha dos Nadadores - massacre
dos portugueses de Mem de Sá contra índios em Cururupe? E, afinal,
que fim levou Sebastião de Magáli, o tresloucado invasor de Ilhéus
em 1907, à frente de uma tropa de nove sujeitos - um exército de
Brancaleone para quem aspirava tomar Minas Gerais, Bahia e o que
mais apetecesse até o Maranhão? O aventureiro Magáli desapareceu de
Ilhéus como que por encanto. Não há registro dele nos cemitérios.
Provavelmente o mataram e está sepultado em cova anônima.
Enquanto os
historiadores, ou os que copiam o óbvio, ignoram as lacunas, tratam
os ficcionistas de enchê-las, na linha de Saramago, que não faz
romance histórico, mas toma o fato histórico como pretexto para a
ficção. É o que faz Marcos Santarrita, sergipano de nascimento,
grapiúna de formação, no seu mais recente romance Mares do Sul.
Longe a intenção
de compartimentalizar a história em relação a outros gêneros,
notadamente o romance. Para que levar mais lenha à fogueira de um
debate vão? Melhor ignorar onde termina a história e onde se
intromete a ficção. Porque suspeita-se que ambas andam de mãos
dadas, unha e carne, e o velho Machado de Assis, com o seu desapreço
à controvérsia, já havia alertado com um traço de mofa: “Um contador
de histórias é justamente o contrário de um historiador, não sendo o
historiador, afinal de contas, mais que um contador de histórias.
Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O
historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o
contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito
Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar.”
Logo à primeira
leitura de Mares do Sul atesta-se a vitória total do ficcionismo,
quer dizer, do contador de histórias. Santarrita planejou um
tríptico sobre Ilhéus, do qual já liberou os dois primeiros tomos, A
Ilha nos Trópicos (Nórdica, Rio de Janeiro, 1990), e agora os Mares
do Sul. Pesquisou para localizar e enquadrar as ramificações do
romance, mas não se trata de pesquisa extensiva, pois não há (pelo
menos, que se saiba) muitos documentos disponíveis, senão um forte
apelo ficcional a brotar de dúvidas, convergências, suposições,
terrenos vagos, desencontros. Os gregos antigos tiveram de encher os
amplos espaços geográficos vazios da Hélade - e criaram a mitologia.
As histórias inconclusas da história de Ilhéus despertam e atiçam o
imaginário.
Em Mares do Sul,
certos topônimos, nomes próprios e arremedos de verossimilhança
servem de moldura ou sustentam a arquitrave do artefato, que o autor
quer romanesco. Não há o que discutir aqui quanto às intenções.
Parte o narrador recriador de uma nascente por vezes quase
indistinta para o milagre de uma construção catedralesca, e como
escreve bem, e porque escreve com poder de análise, estabelece então
uma verdade absoluta, aquela verdade ficcional dos veros
ficcionistas, que suplantará qualquer outra, inclusive a verdade
histórica.
É de ver-se que
o romance de Santarrita, de início apoiado em referências históricas
e geográficas (no tomo dois da trilogia, a personagem Isabel,
espécie de alter-ego do autor, não se separa da Crônica da Capitania
de São Jorge dos Ilhéus, de Silva Campos), talvez ancorado num
modelo de concepção clássico, toma o freio nos dentes, dispara. Não
há como conter-lhe o ímpeto na correnteza da imaginação, e a certa
altura o leitor se põe a pensar que está a seguir um enredo de
folhetim, uma história de lances rocambolescos. Já está fisgado, já
não consegue travar o interesse, a curiosidade o faz avançar, é-lhe
impossível ficar na margem, como espectador, enquanto as águas
correm. Mares do Sul desborda e se espraia. E espalhando-se numa
série de mosaicos que aos poucos se aproximam para formar o desenho
de um plano-piloto, o relato galvaniza e arrasta quem o escuta.
A verdade
imposta pela ficção substitui a insatisfatória ou escamoteável
verdade histórica. Curiosamente, uma das epígrafes de A Ilha nos
Trópicos é de Rocha Pombo, autor de uma História do Brasil: “Não
receio mesmo dizer que a legenda completa a história. É uma espécie
de arte que diz melhor a verdade do que diria por si só a história.”
O fato é que
Marcos Santarrita nos devolve o prazer da leitura. Ainda bem que
ainda se escrevem romances como os clássicos de ontem, os Stevenson
e os Conrad, de quem Santarrita é tradutor. Conrad, autor de várias
aventuras nos trópicos, em especial a obra-prima Nostromo, dizia a
seu companheiro de ofício Ford Madox Ford que o ficcionista há de
espremer bem o assunto até que dele já não reste sumo.
Esse gênero de
romance determina seu leito, requer rio longo e largo de muitos
afluentes, com numerosos sub-plots. E implica a arte de narrar,
aquele dom feiticeiro de criar expectativas a cada passo, a cada
parte, de que são exemplo as Mil e Uma Noites. O autor-narrador, com
a sua visão de mundo, o seu ponto de vista, a sua empatia, poderá
socorrer-se da memória, tirar achegas da autobiografia, mas será em
instância derradeira um criador. Eis porque Mares do Sul, tal e qual
os romances de Conrad, combina a nobre arte do relato de aventuras,
que é stevensoniana, com as inquirições e sentenças morais. O
personagem em situações-limite purga pecados ou submete-se a
provações. Por mais que fuja do Mal, o Mal o espreita e espera.
Em Mares do Sul,
a Isabel de apetites vorazes é personagem imemorial; nela atua uma
herança psicológica atávica, que parece cumprir de uma geração para
outra o fado do desassossego e sedução feminil. Personagem plural,
ela se desdobra, se disfarça e está sempre a renascer. Pena que no
romance a voz de Isabel seja abafada por crises físicas e morais.
Ela começa o romance em estado de coma e termina balbuciante, após
um aborto, nos braços do negro sudanês Bazaia, quando a queríamos
forte para o clímax vigoroso.
Dois emissários
palacianos, Dom Luís e Caldeira, em missões sigilosas, fazem o
contraponto do óbvio com a dissimulação. Personagens secundários,
principalmente meninos negros e mucamas, também se impõem. Um deles,
no seu gingado natural, na sua agilidade felina, descobre uma dança
que é arma de defesa e ataque: a capoeira.
Mas Bazaia é a
dramatis personae mais significativa e crível. O romancista o
tempera na África, na ambiência tribal, nos embates pela
independência, e o traz a Ilhéus, como agente inglês disposto a
impedir o tráfico negreiro e liderar escravos revoltados do Rio do
Engenho.
O romancista de
Itajuípe cria no então vilar de Ilhéus, primórdios do século 19,
densa atmosfera de conspirações, amores pagãos, luxúria e interesses
econômicos escusos sob o pálio da má política. Assim formou-se o
Brasil, assim brotaram os indícios de uma identidade cultural que
ainda hoje buscamos. A riqueza de peripécias tecida na fina cambraia
das urdiduras romanescas nos remete às leituras juvenis de Ponson du
Terrail. Os atabaques dos negros ecoam na vila em sobressalto. A
expectativa é de cerco e invasão iminentes, ainda mais porque os
governantes brancos armaram uma forca para pendurar Licutã, que
matara um feitor na fazenda canavieira.
A época antecede
o grito da Independência do Brasil. Pedro, príncipe regente, ainda
não sabe se prestará obediência à Constituição do Porto que limita
poderes da monarquia. Por enquanto Pedro passeia em reluzente cavalo
pela Quinta de São Cristóvão e gera filhos bastardos. O capítulo em
que ele aparece é perfeito e, por obra da boa escrita, convence mais
que uma descrição acurada de historiador. Por causa de um bastardo,
Isabel, mulher pública no Rio de Janeiro, retorna à família que
manchou em Ilhéus, via Salvador, onde assiste de uma sacada a uma
cena de extrema violência - um eco da bipolarização política
introduzida pelo movimento constitucionalista do Porto.
A revolução
liberal também divide consciências e lealdades em Ilhéus, vila então
em decadência, e paralelamente planta forte sentimento de
sebastianismo. O fidalgo Dom Antônio de Colares, bem lançado, chega
a vestir armadura. Julga-se a pelejar ao lado do Rei Virgem, pelo
Rei Virgem, em Alcácer-Quibir, enquanto amantes sorrateiros da
mulher lhe invadem o jardim à beira-mar. O Quinto Império de Dom
Antônio tem duas polegadas quadradas. Como convém a um enredo nos
trópicos, não faltam pitadas de malícia ou de escancarado descaro,
em Mares do Sul - aquela caricatura inarredável da novelística
peninsular, de par com o estofo moral. É o barroco em glória: a
carne geme e palpita de gozos pagãos e o espírito se compraz nos
êxtases místicos.
Monólogos e
solilóquios, visões panorâmicas e miniaturas, ira e lirismo,
indignação e contemplação, a solidão do ser e a algazarra verbal -
uma partitura variada, uma orquestração ruidosa, um mundo. Romance
de exteriores, medido quando Santarrita intervém (mas o faz pouco)
para represar-lhe o fluxo, desmedido e às vezes desmesurado quando
rompe as comportas, Mares do Sul impressiona pela largueza de
horizontes narrativos. Retrocede às Cruzadas - e como faz parte de
uma trilogia ilheense, o leitor fica a perguntar-se qual o sentido
exato do mergulho histórico-temporal e reserva-se para um eventual
ajuste final de peças na aparência sobressalentes.
Acasalamento
feliz de entertainment, inquirição psicossocial e análise,
impressiona igualmente pela fluidez e apuro literário. Sem ater-se
deliberadamente a pesquisas semânticas, Santarrita demonstra ser
aquele escritor culto, às vezes erudito, a dominar a tradição
clássica; na sua escrita essa tradição perde vez por outra a rigidez
do modelo e desanda em molecagens bem brasileiras, tais e quais os
meninos negros nas praias enluaradas de Ilhéus.
Fecha-se o
romance - a ficção e a linguagem narrativa teimam em prolongar-se,
perturbadoras. O que vale atestar: Santarrita, ficcionista maduro,
empreendeu um romance com invulgares poderes de imantação.
Hélio Pólvora é
ficcionista, tradutor e crítico literário. Pertence à Academia de
Letras da Bahia.
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