Ivo Barroso
IVO Barroso por IVO Barroso
Nasci em Ervália, Minas Gerais, num distante Natal. Meu pai era o
farmacêutico da cidade e me dava todos os livros que eu pedia. Li
meus primeiros versos na seção de livros do Tesouro da Juventude, em
geral poemas descritivos, que logo tentei imitar. Havia também as
obras completas de Machado de Assis e de Humberto de Campos,
encadernadas em verde e azul, edições Jackson Inc. Eu achava
Humberto de Campos um grande poeta e fiz muitos sonetos imitando seu
estilo comparativo (ele contava uma história bíblica ou mitológica e
terminava assim: "Também eu, como X..." etc). Meu primeiro soneto
publicado em jornal, O Pássaro Cego (13.04.47 - Gazeta de Viçosa),
trazia uma epígrafe dele. Eu gostava muito de epígrafes.
Mais tarde, conheci por acaso Augusto dos Anjos e passei a fazer
sonetos à semelhança do EU. Lembro de um, que causou estranheza ao
meu professor de Biologia: A Vida é o resultante grau da orgânica/
Evolução da célula – é energia/ Que mais se apura dia para dia/
Desde os tempos remotos da Era Oceânica.
Mas antes eu já formara todo um caderno de versos dactilografados, a
que chamei Caixinha de Música. Versos de menino, escritos entre
1945-48:Caixinha de Música, Soldadinhos de Chumbo, Papagaio de
Papel, Realejo Triste, etc. aos quais juntei a Rapsódia Ervalense,
de 1951, de exaltação à minha terra. Por incrível que pareça, este
livro está saindo agora – quase meio século depois -pela Editora
Atheneu (E-mail: atheneu@nutecnet.com.br), numa edição para fins
beneficentes, de ajuda ao Lar Frei Luiz. Aproveitei para acrescentar
alguns sonetos desse tempo, que achava bons, e vários poemas
familiares, entre eles o Poema a meu Pai, que mandei para o Jornal
de Poesia. Aproveito para dizer que neste livrinho está um bem
feitinho e muito sincero soneto para O Dia das Mães, que transcrevo
a seguir, e espero que o livro seja um bom presente de comemoração
desse dia nos próximos anos:
DIA DAS MÃES
O dia de hoje é teu, ó minha Mãe, de quantas
Mulheres como tu que, do seio fecundo,
Fizeram no milagre ideal das horas santas
Uma vida surgir entre as luzes do mundo.
Tu que sofres sorrindo e que chorando cantas,
Recebe neste dia o meu louvor profundo,
Embora eu não encontre em meio a frases tantas
Nenhuma só que expresse o amor de que me inundo.
O dia de hoje é teu - nos diz o calendário.
No entanto sabes bem que este dia é arbitrário:
Dias não há no amor que sinto dentro, aqui.
Aumenta a cada instante e cresce a cada hora,
Porque no coração do filho que te adora
Todos os dias do ano ele os dedica a ti. |
RSL - No programa do Jô Soares, você afirmou
que a poesia (depois das grandes guerras) estava morta. Em que
alicerce sustenta esta afirmação?
IB - No programa do Jô Soares, em que eu falava sobre Baudelaire,
citei (mal) essa frase de Adorno, que agora parece estar em moda:
Como é possível fazer poesia depois de Auschwitzatinge menos? Mas a
frase é falaciosa: Como foi possível fazer poesia depois da Guerra
de Tróia? Ou da derrota de Napoleão? Ou da I Guerra Mundial? Na
verdade, a poesia transcende os acontecimentos e por mais que estes
subvertam nossas noções de ética e estética, sempre haverá alguém
que fará poesia. Quanto à sua eficácia, já é outro problema.
Cada vez a poesia "atinge"menos leitores, seja porque recorre a uma
linguagem que em última instância a elitiza ou a marginaliza, seja
pela sua atual incapacidade de atingir aquilo que parece o fim
precípuo dessa arte: o poder de emocionar, de tocar uma corda
sensível do leitor e tirá-lo, ainda que por brevíssimos instantes,
do fulcro habitual em que vive e pensa. A maior parte da produção
poética de nosso tempo nada tem a ver com a poesia propriamente
dita: é prosa ruim ou letra de música ou abjeções destinadas ao vaso
sanitário. Além disso há uma persistência inexplicável por métodos
que de há muito se revelaram inócuos. Tenho engulhos quando leio
poemas com trocadilhos ou jogos de palavra aleatórios tipo pá/lavra
e quejandos. Há gente que ainda hoje usa recursos concretistas
pensando que está fazendo poesia "avançada"...
RSL - O que o fez dedicar toda uma vida à
tradução dos Poemas de Rimbaud? Foi alguma angústia da influência?
Valeu deixar de nutrir o poeta que é para trazer aos leitores de
língua portuguesa a poesia do jovem gênio?
IB - Antes de Rimbaud dediquei muito tempo aos sonetos de
Shakespeare. A primeira edição (1975) trazia apenas 24 deles; na 2a.
(1971) já eram 30 e preparo agora outra para o fim do ano, com 50.
Se ainda me sobrasse tempo, gostaria de fazê-los todos, mas é sonho
apenas. A "descoberta" de Rimbaud foi assim: em 1971 havia um filme
com Jean-Claude Brialy, Terence Stamp e Florinda Bolkan que ia
passar no Brasil. Eu colaborava assiduamente com o Suplemento
Literário do Jornal do Brasil e escrevi um artigo em que lamentava a
ausência de livros de/sobre Rimbaud, pois as traduções de Xavier
Placer e de Ledo Ivo estavam de há muito esgotadas. Pouco depois
recebi o convite de Ênio Silveira para traduzir Une Saison. A
tradução foi entregue em janeiro de 1973, no mesmo dia em que
embarquei para a Europa, onde iria acabar ficando por um quarto de
século. Antes de partrir, tive a surpresa de ganhar um prefácio de
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Atahyde), que era, à época, a nossa
maior autoridade no assunto. A edição devia sair naquele ano em
homenagem ao centenário de publicação da obra. Acontece que o livro
só veio a sair em 1977 por motivos que só recentemente chegaram ao
meu conhecimento. A censura da época embargou o livro porque o
prefácio do Dr. Tristão continha um rasgado elogio ao Ênio Silveira,
ali chamado de "o mais perseguido e o mais corajoso de nossos
editores". A capa do livro era horrível, parecia um opúsculo do
Instituto Butantan, mas vendeu e fizemos uma reedição em 1983.
Enquanto isto, morando na Europa, passei a me dedicar ao assunto e
acabei adquirindo mias de 150 livros de/sobre Rimbaud. Cada um que
lia me dava a convicção de que se tratava de um fabuloso poeta, não
devidamente conhecido no Brasil. Resolvi traduzi-lo todo e em, 1995,
já de volta ao Brasil, lancei, pela Topbooks, o primeiro volume das
obras completas, seguido em 1998 de Prosa Poética (com o qual ganhei
o Jabuti de tradução deste ano) e agora preparo o último, A
Correspondência, que deve sair daqui a uns dois anos.
No prefácio do 2º volume respondo precisamente à sua pergunta. Achei
que era mais proveitoso para o público brasileiro publicar a poesia
de Rimbaud do que a minha própria; estaria, dessa forma, trabalhando
mais efetivamente para a literatura brasileira, incorporando a ela
esses textos, do que lançando os meus livrinhos de poesia, que
seriam lidos apenas por uns poucos.
RSL - Rimbaud tem links no rock. Exerceu
influência no The Doors e Bob Dylan. Por que demorou tanto tempo
para ter uma tradução à altura?
IB - Há muito equívoco em torno de Rimbaud. O maior deles consiste
talvez em considerar sua vida superior à sua obra. É claro que todos
nós vibramos com um autor que conseguiu "viver" seus escritos, suas
idéias; isso demonstra uma profunda coerência. Mas no caso de
Rimbaud não é bem assim: o chamado "Rimbaud africano" (fase em que o
poeta se transfere para a África e passa a se dedicar ao comércio)
já não é o escritor, mas seu duplo. E o que deve contar é o que ele
deixou escrito, fosse ele tabelião, açougueiro ou jogador de
futebol. Os surrealistas, com Breton à frente, "popularizaram"
Rimbaud, ou melhor, deram-lhe sua verdadeira dimensão depois que
Paul Claudel tentou transformá-lo em um "místico em estado
selvagem".
Mas os beatniks resolveram tomá-lo como precursor ou endossante de
suas idéias. Jim Morisson chegou ao absurdo de se mudar para Paris
para estar mais próximo de seu ídolo, mas a "poesia" de Morisson
está a anos-luz da poesia de Rimbaud. Acho no entanto todo approach
válido, desde que conduza à obra do poeta, pois ela é que
verdadeiramente importa; sua insubmissão poética, sua revolução
vocabular, seus avanços estilísticos e, mais que tudo, sua
capacidade de exprimir o desespero. É muito difícil pensar em
alguém, principalmente num jovem brasileiro, que lhe sirva de
paralelo. Atribuo a demora em ver sua obra integral transposta para
o português às inúmeras dificuldades que ela coloca ao tradutor. São
poucos os que estão dispostos a se dedicar muito tempo à obra
alheia.
RSL - Me parece impossível que um garoto possa
escrever, hoje em dia, com tamanha genialidade. Existe alguma teoria
capaz de explicar a precocidade de Rimbaud? ou estamos diante de um
fenômeno metafísico?
IB - Há certamente muitos outros gênios precoces e o maior deles foi
sem dúvida Mozart. Na literatura, na própria França temos os
exemplos de Victor Hugo e de Radiguet. Mas nenhum deles conseguiu
expressar o inexprimível com a genialidade de Rimbaud. Bastava ter
escrito o Barco Ébrio, embora me poema preferido seja Memória; acho
que toda a poesia está ali – a lembrança que se projeta para o
futuro, a impossibilidade de mover esse barco do destino.... Há
muitas tentativas de explicar essa genialidade; há mesmo tentativas
de negá-la, de reduzi-la a simples imitações. Nenhum autor como
Rimbaud despertou tanta controvérsia; há livro que discute uma
vírgula em um poema.
Pessoalmente acho que sua genialidade precoce se concentrou em uns
poucos anos de atividade literária; que explodiu; que acabou. Nada
mais havendo a dizer, Rimbaud corajosamente calou-se.
RSL - Depois dessa empreitada gloriosa, você
está lançando uma antologia com seus poemas. É natural que a
convivência "intelectual" com Rimbaud construa uma autocrítica capaz
de silenciar qualquer um. Fale um pouco do seu livro? É a sua vez
agora? Em que trabalha?
IB - Em geral as minhas traduções, por serem todas de autores
altamente representativos, concoorreram para um aguçamento de minha
autocrítica e a conseqüente inibição da criação original.
Mas sempre fiz versos. Em garoto tocava três sonetos por dia. Depois
passei a amadurar longamente meus poemas: Papel & Chão, de meu livro
Nau dos Náufragos, editado em :Lisboa em 1981, ficou dez anos
gestando dentro de mim, até que de repente veio à tona de uma vez,
em uma só noite (trata-se de um longo poema). O mesmo pode ser dito
para as Vistações de Alcipe. Cada vez a poesia me visita com mais
espaço, mas isso parece uma constante em muitos poetas e Ferreira
Gullar, por quem tenho a maior das dmirações, lavado quando diz que
gostaria e poderia fazer um poema por dia, pois domina o ofício, mas
só se sente "lavado"quando o poema acontece por si mesmo. Estou
juntando os poemas esparsos, escrevendo ou reescrevendo alguns
outros e esperando a chegada daquela que será o poema de abertura do
livro, já todo estruturado na mente, mas que ainda não quis "vir".
Curiosamente, apesar do demorado convívio com Rimbaud posso dizer
que não tenho ou que me esforcei por evitar qualquer influência
dele. Tenho dois poemas dedicados a ele, mas o estilo é
completamente diferente, até mesmo no Poetas de Setenta Anos, que é
uma paródia ao seu Poetas de Sete Anos, em que falo das angústia de
um tradutor. Espero ter o livro pronto até o fim do ano; não terá
muitos poemas pois não estou transcrevendo na íntegra os dois livros
anteriores, mas fazendo neles uma rigorosa seleção. Por outro lado,
incluo sonetos da fase juventude, já que reconheço valores poéticos
em alguns deles. Não iria desprezá-los só por serem sonetos, forma
que nem sempre é vista com bons olhos pelos que se dizem de
vanguarda.
RSL - Quando começou a navegar? Qual uso faz
da internet?
IB - Só passei a usar o computador a partir do segundo volume de
Rimbaud, que me teria dado um trabalho incalculável se feito
simplesmente a máquina, por causa das notas. O computador facilita
uma série de tarefas e, assim como ninguém mais aprende tabuada
depois da calculadora eletrônica, daqui há pouco ninguém saberá
escrever senão em computador. Mas sou um internauta fraco, apanho
muito da técnica.
RSL - Em "Burocrático", poema do livro "Nau
dos Náufragos", você é conciso. São características do poema ou do
poeta?
IB - Embora abomine o hai-kai, tenho alguns poemas curtos, como o
Burocrático; nasceram assim. Meu ideal, no entanto, talvez por
influência de Mário Faustino, que vivia reclamando de nós um
"épico", é o poema longo. Só no poema longo você pode revelar sua
capacidade de manter a peteca da emoção no ar. Os Poemas de Amor
foram um desafio: já não se fazem poemas de amor. Mas eu tinha que
fazer aqueles, eram meu secret garden, meu paraíso oculto que exigia
de mim o seu lugar ao sol. O poeta escreve para não deixar que as
coisas morram dentro dele.
RSL - Consegue explicar o por quê um
brasileiro gasta vinte reais num disco do Tchan e ainda tem a
"cara-de-pau" para afirmar que não compra livros por serem estes
muito caros? A poesia é só para poetas?
IB - A explicação é a nossa falta de cultura. Se os leitores
tivessem a possibilidade de ser mais cultivados certamente leriam
poesia e não só. Mas a educação básica no Brasil é um desastre e a
televisão está aí mesmo para impingir o que há de mais vulgar e
deprimente. A poesia não é só para poetas. O poeta quer transmitir
suas emoções para um grande número de leitores e é sempre mais
gratificante ouvirmos uma palavra de satisfação de um leitor não
versado em poesia do que a de um outro poeta, que estará
comprometido com todos os engenhos da arte.Um poeta da atualidade
pelo qual tenho grande entusiasmo é o Gullar, capaz de fazer uma
poesia simples, direta, mas nem por isso despida de emoção. Gosto de
Foed Castro Chamma, autor de A Pedra da Transformação, poema de 10
mil versos, quase para iniciados.
RSL - Qual o verso de Rimbaud que mais lhe
agrada?
IB - O verso de Rimbaud que me ocorre à mente com freqüência é
aquele trecho de Uma Estadia no Inferno: "Mas tudo isso passou. Hoje
sei reverenciar a beleza". É um atestado da volta por cima.
RSL - Qual o papel do escritor na sociedade?
IB - O poeta não tem necessariamente que exercer um papel na
sociedade, mas também não pode se omitir dela. O escritor tem por
obrigação exprimir a voz de seu tempo, suas dúvidas, reclamar de
suas injustiças. Mas sem ser arengueiro, sem orador de palanque. Sou
contra a chamada poesia social. A poesia é uma tentativa de afirmar
e ao mesmo tempo de romper uma individualidade.
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Rodrigo Souza Leão |