Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Ivo Barroso




...e dá-se que de novo lê-se Ulisses


[especial para a Folha de São Paulo]



 

O much ado que se vem fazendo a propósito de uma nova tradução do Ulisses suscita de imediato a pergunta: é melhor que a anterior? ou -- mais categoricamente -- vale a pena fazer-se uma nova tradução do Ulisses?

Quanto à última, a resposta será sempre positiva: toda grande obra merece ser retraduzida de tempos em tempos, atendendo-se à própria evolução da língua, à modernização do entendimento do tradutor em face dos novos estudos e análises que surgem entre uma e outra tentativa. Em benefício do leitor, sonha-se que a nova tradução deva ser sempre melhor, superior à antecedente, por um motivo ou outro. Tal é a expectativa que vem ocorrendo em relação ao trabalho de Bernardina da Silveira Pinheiro, que a Objetiva acaba de lançar em comemoração do 101º aniversário do Bloomsday.

A tradução anterior do Ulisses, feita por Antônio Houaiss, deveu-se a uma série de circunstâncias que se conjugaram: a um gesto mecênico de Ênio da Silveira, que procurou assegurar ao tradutor num momento difícil um estipêndio condigno (Houaiss tinha sido cassado do Itamaraty e passava por problemas de saúde na família); ao fato de ser este, na ocasião, o único escritor com uma “linguagem adequada” para a transposição do texto joyciano; e à necessidade editorial de se lançar no Brasil um livro reconhecidamente fundamental para todas as literaturas e que nos chegava com um atraso de 43 anos.

Momento estelar na história da tradução brasileira, o Ulisses foi um trabalho pioneiro em que o erudito professor Antônio Houaiss desbastou, ao longo de um ano, a "pedreira joyciana", criando em português uma linguagem-padrão, equivalente às ousadias semânticas do original. Quando de sua publicação, o crítico e tradutor paulista Augusto de Campos -- seguramente uma das maiores autoridades na obra de Joyce no Brasil -- escreveu uma série de artigos, posteriormente reunidos no livro Panaroma do Finnegans Wake (editora Perspectiva, 1971) em que analisava minuciosamente as soluções apresentadas por Houaiss, apontando passagens ou palavras para as quais sugeria outras soluções. O trabalho de Augusto de Campos vinha reforçar a assertiva de que a única maneira honesta de se criticar uma tradução é mostrando como se faria no caso específico. Houaiss, de bom grado, incorporou várias de suas sugestões em edições posteriores da obra. Também o tradutor Millor Fernandes contestou, em especial, a tradução da palavra final do monólogo de Molly (yes), que Houaiss traduzira por "sins", no plural, e que para Millor deveria ser algo como "É!" ou "Eu vou!", por entender que a palavra ali representava um grito de orgasmo.

Sobre a importância da obra há quase unanimidade nos meios intelectuais; chega-se mesmo a considerá-la um divisor de águas, a conquista de um patamar inultrapassável na técnica narrativa, o modelo-princeps a que estaria submetida toda a produção ficcional que viesse depois. Em 1956, a 34 anos de seu aparecimento inicial na França, surge no Brasil um fenômeno estilístico semelhante: João Guimarães Rosa, que já surpreendera a crítica em 1937 com a coleção de contos intitulada Sagarana, lança o romance Grande sertão: veredas que parecia, em termos nacionais, destinado a marcar, como Ulisses, o modelo absoluto da prosa vindoura. Mas a verdade é que, passado o efeito devastador da tsunami joiciana (bem como o da pororoca vimaranense), as populações ribeirinhas da literatura mundial (e nacional) voltaram a construir seus enredos com os destroços do mesmo material que haviam herdado das literaturas clássicas, não-revolucionárias. E hoje, em parte alguma do mundo (ou do Brasil) pode-se encontrar quem esteja escrevendo à Joyce ou à Rosa, não obstante a contribuição de ambos para a renovação dos estilos literários.

Quanto à adequação do trabalho transpositivo de Houaiss, não obstante ter sido considerado o right man para um feito daquela envergadura, houve certa ironia subjacente por parte de alguns que já se arrepiavam com seu “estilo cipó”, vendo no texto em português uma extrapolação das dificuldades do original. É certo que Houaiss, após dominar a técnica joyciana da “palavra-amálgama”, aplicou-a em muitos trechos em que ela não aparecia em inglês, mas que se prestavam para aquele tipo de “sanfonamento” em nosso idioma, lançando mão de uma técnica compensatória de que se valem não raro os bons tradutores, talvez para enfatizar o “stil nuovo” joyciano. Seu Ulisses foi bem-vindo por todos os apreciadores de Joyce que não sabiam inglês e chegou mesmo a alcançar uma parte do público acostumado a ler tudo o que está na moda. Tornou-se um “sucesso de estima”, prerrogativa dos “unhappy few”, auto-flagelação dos sísifos literários capazes de carregar esta pedra até a página 846, embora o “leitor da moda”, como é sabido, não tenha conseguido ultrapassar uma trintena delas.

A nova tradução, devida à professora Bernardina da Silveira Pinheiro, a que vinha se dedicando há 9 anos, profunda conhecedora da vida e da obra de James Joyce, de quem já traduzira O Retrato do Artista Quando Jovem -- chegou precedida das informações de que ela se divertira muito enquanto executava seu trabalho e nele havia preservado o coloquialismo e a musicalidade que permeia a obra joyciana. A leitura comparada das duas traduções revela, desde o início, que a linguagem de Bernardina é menos erudita, menos rebuscada que a de Houaiss, e seu coloquialismo procura estar a passo com o linguajar atual. Isso não quer dizer que a obra se tenha tornado menos complexa, mais compreensível.

O perigo dessa facilitação seria transformar o texto numa espécie de “livro condensado”, à maneira Digest, com todas as arestas devidamente polidas para atender à ignorância do leitor. Felizmente, isso não acontece, e se, em muitas passagens parece que o texto de Houaiss sofreu apenas um copidesque, com a mudança ocasional de uma palavra arrepiada por outra mais lisa -- vê-se em seguida que a tradutora teve o critério de traduzir de costas voltadas para o precedente: as soluções são dela própria, por mais que se possa argüir contra sua propriedade ou funcionamento. No prefácio, há de fato uma insistência quanto à musicalidade da prosa joyciana (não esquecer que ele começou como poeta, num sintomático Música de Câmara). Essa musicalidade dificilmente poderia ser preservada em português na transposição de monossílabos seqüenciais que não temos, aliterações que não podemos fazer, etc. Em alguns trechos é possível dizer-se que Houaiss foi mais feliz em captar essa “música” ao submeter a frase quase a uma contagem métrica. Mas, a nova tradutora também se esforçou para obter efeitos à sua maneira.

Intraduzíveis são os jogos de palavra, os trocadilhos, as deformações léxicas, que não funcionam quando transpostos à risca ou se alheiam inteiramente do contexto quando substituídos por improváveis equivalências. Desta forma, grande parte do divertimento da tradutora teria que ficar na leitura do original, prática recomendável àqueles que conhecem inglês. Na tentativa de permanecer fiel ao texto, preservando-lhe supostamente todas as nuances, a tradutora chegou a afirmar que em certas passagens errou de propósito na composição da frase em português para corresponder aos intencionais deslizes de Joyce que constavam do original. Contudo, aqui parece que Bernardina incidiu na mesma tentação de Houaiss em criar mais do que lá estava, pois seria pouco provável que Joyce, se escrevesse em português, cometesse frases como “Parado, ele perscrutou”, “Solenemente ele avançou”, “ele se inclinou a ele”, “Ele raspou”, “ele esbravejou” [capítulo inicial], em que o pronome, indispensável em inglês, é de praxe omitido em português, em proveito da elegância da frase, por estar subentendido na flexão verbal. Igualmente, na escolha de certas palavras (como “fazer um banzé”, para traduzir give him a ragging), é de crer que Joyce tivesse usado sinônimos mais em sintonia com o tom da frase (como, por exemplo, “dar um pito” “passar um sabão”), igualmente coloquiais, mas não tão pés-na-cozinha.

Haverá inúmeros trechos, sem dúvida, em que a nova tradutora terá sido mais legível que o antigo mestre, seja pela solução vocabular mais imediata, menos arcaizante, seja buscando uma expressão mais próxima da forma léxica empregada por Joyce e não de suas intenções estilísticas. Também é certo, como já previa Houaiss, que outras traduções venham a surgir depois desta. A de João Palma Ferreira, em Portugal, data de 1989. Sabe-se que o professor Caetano Galindo, da Universidade do Paraná, já tem a sua em adiantado estado de gestação. É possível até mesmo que, na tentativa de popularização do Ulisses, surja mais tarde uma tradução cheia de plebeísmos como “cara”, “eu lhe vi”, “o livro que eu mais gosto”, “essa semana”, etc. Contudo, o problema não está na tradução, mas no livro em si: eis uma obra a ser lida por escritores, não para lhe imitarem o estilo, mas para conhecerem as audácias estilísticas que um autor de gênio pode conceber. Nenhuma publicidade ou facilitação será capaz de transformar Ulisses em um novo Código da Vinci.


 

 

 

 

28/06/2005