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Ieda Estergilda


 


Tietê, uma beleza ferida


(Jornal da Tarde, Janeiro, 1995)

 

 

Enquanto a cidade completa mais um ano, penso no seu rio, olhando um álbum com fotos de Eduardo Castanho. Visto do alto em toda sua extensão, o rio da anhumas, das perdizes, dos veados, dos tetés e dos tiés mais parece uma cobra gigantesca cruzando e dividindo o estado de leste a oeste.

O Tietê, “índio velho feiticeiro do sertão” dos versos de Martins Fontes, é o mesmo rio urbano de Mário de Andrade, que “debaixo do arco admirável da ponte das Bandeiras murmura num banzeiro de água pesada e oleosa”. Rio que os geólogos consideram novo, nos seus 12 milhões de anos; rio teimoso, que ao contrário de quase todos os outros, despreza o mar e avança interior a dentro. Por ele já se partiu para os Andes e ao longo do seu caminho para o oeste, muitas cidades surgiram.

Deslizando tranquilas pelos vales da região de Mogi das Cruzes, as águas do Tietê são boas de plantar e boas de beber. Quando chegam na grande cidade é que mudam, e não por vontade própria, tornando-se escuras, mal-cheirosas, sinônimo de coisa ruim e indesejável.

Que raio de rio é esse? Perguntamos ao cruzar suas pontes, tapando o nariz. Parece uma cobra parada. Revoltados mas distantes, dizemos que as avenidas marginais parecem rios de concreto que enlouqueceram o Tietê. E que é duvidosa a grandeza de uma cidade que não consegue preservar o rio que a abraça.Mais na frente, ainda nauseados, concordamos: a decantada importância econômica, histórica e geográfica do rio serve apenas de fachada para acobertar os inúmeros crimes praticados contra sua integridade.

Como todo rio, o Tietê carrega histórias e lendas. Contam que mães- d’água encantadas levantavam grandes ondas e atraíam os navegantes para o fundo do rio. O Salto do Avanhandava, dizem que foi uma sucuri gigantesca morta por um índio. Nas noites brumosas, o povo costumava ver as almas penadas dos sertanistas desaparecidos subindo e descendo o rio em misteriosoas embarcações.

As imagens dos fotógrafos são um alento para os que lamentam o rio da vergonha, grande demais para ser infeliz. No seu trecho final, o pôr-do-sol no encontro com o rio Paraná é beleza pura. Um cavalo pastando na margem já coberta de sombras completa a harmonia cênica. Na prainha de Itapura, a visão de coqueiros e areia dourada não é miragem, e as águas azuis são mesmo do Tietê.

Seria tão bom retomar o vínculo afetivo com o rio, fazer dele novamente a nossa praia. Trocar a sensação de nojo e de horror por um passeio nas suas margens. Em dias de calor, em vez de enlouquecer no trânsito parado das marginais, desceríamos até o rio, para lavar o rosto e o pescoço suados. Tudo tão humano e necessário, possível, mas difícil de entender porque não acontece. Talvez por sermos pequenos na nossa vontade e indignação. Mas, quem sabe, um dia opróprio rio se manifeste a seu favor. E, como na lenda, mães d’água encantadas e protetoras levantarão grandes ondas e levarão para o fundo do Tietê tudo e todos que o maltrataram.

 

 

 


 

18/11/2005