Inez Figueredo
Eidos, o vampiro vermelho que
translineava
Sobre o negro espaço da faixa
intermitente, sob fixos rubis, imensos olhos tresnoitados, à sua
frente, parou. E pensou num cálice. De cristal, por suposto; o mais
fino possível e de uma transparência absoluta. Com a forma do bulbo
da tulipa, flancos arredondados para que fizesse possível, ao
líquido, acomodar-se. A boca ligeiramente retraída para que, aos
aromas, fosse possível concentrar-se e, assim, aos sentidos realçar
todas as qualidades do vinho: à visão, ao olfato, ao paladar, ao
tato. Haste fina, tão frágil que ao segurá-la, retorcendo-a nas
mãos, aquecendo-a, mirando a espuma derreada na superfície do tinto
vinho, poder-se-ia parti-la e, mesmo assim, manter na boca, por
algum tempo, aspirando, o líquido atijolado através dos lábios quase
fechados. A quentura obrigou-o dissimular, evitando a curiosidade da
moça do carro ao lado que o observava de viés — Capitu ou Madonna?
Pareceu-lhe símile a alguém. — Custou-lhe desviar o olhar cansado do
semáforo vermelho, da taça, do colo rubro. Vagou, volúvel, sobre as
capotas reluzentes, os rostos indiferentes, por fim, imobilizou-se
fitando a vitrine da esquina: luz, som, movimento, cores. Imensa
papoula brilhante, rorejada, encarnada, sobressaía, sibilante, da
boca carmim do manequim em cetim vermelho. — Ou seria cor fúcsia,
cor-de-bofetada? — Ouvira sobre uma mulher que humedecia pétalas em
água fria, esmagava-as e aplicava-as na delicada pele da face
lanhada (lanhada?). Ovídio, “Os cosméticos para o rosto da mulher” e
as vãs tentativas de aprisionar a fluidez do tempo. Do rio, do fumo,
dos cheiros, do vento. A mente encharcada— cor-de-beterraba —
ocupou-se do transitório. Do Esboço, da Forma apreendida pelo olho
do espírito do artesão, antes de imergir. Mergulhou a mão no bolso
milenar em busca do filtro mágico do amor a: Fêmea. Aquela ali, no
“out door”, que sobressaía entre os semáforos era a Sua. Fluida como
a água, imprevisível qual semente alada; contraditória tal vento de
dois rumos. Singular. Ela e os cheiros cacofônicos da Floresta/Urbis.
Mergulhia do prazer, da dor, da beleza. Rara sensação aconchegou-se
entre seu coração e o abdome; roda de oleiro, pião, semente de
sésamo com arroz — “bola de substência irritável” —, deu-se conta.
Jazeu, desplumado, sobre a vitrine, a papoula e o cetim macio da
camisola vermelha da mulher do rio, dos ventos dos cheiros
desencontrados — um dia Chanel número 5, no outro colônia cítrica;
em qualquer deles, excitante odor de mel, canela, alecrim e
tangerina; coentro e cebolinha verde. Apalpou a fronte cansada e
ouviu: “FAT”, o miraculoso som do bambu sendo rachado. A dureza e a
impetuosidade arrastou-o, de volta, na contramão. (Do pensamento). —
Pode-se pensar o que se quiser — ouviu-se dizer —a realidade
continuará, lá; em abismos insuspeitos; entre o vermelho e a saída;
o arranque da máquina e a fluidez calma e interminável do fluxo. Do
rio. Transeunte, apenas,
— Vem comigo?
— Não sei! E se eu não amanhecer?
— Por algum tempo, apenas; quero ouvir
vozes no apartamento, ruídos na cozinha, solas dos pés, quentes,
sobre minhas pegadas, etc., etc.; compressas na dor; amnésia
temporária da solidão. E se eu lhe disser que está nascendo um
antúrio no jarro de barro da varanda?
Embutiu-se. Deixou-se boiar. Calado.
Aí ela veio. Nua, imperceptível visagem. Fantasmagoria. Tocou-lhe as
plantas dos pés e massageou-lhe os dedos, as pernas, as coxas;
deteve-se nos joelhos, esfregando a pele delicada e rugosa. O Óleo
enganador a deslizar-lhe sobre o corpo inerte: pernas afastadas,
braços, ombros; músculos tombados, olhos presos ao teto; tórax em
repouso, Abdome e sexo. Galgou seu corpo açulada pelos sussurros da
Velha/Mãe; deslizou coleante, sinuosa, infiltrando-se entre a Pele e
o Ser: úmida, tépida, múltipla. Sugando-o, em rítmico movimento. Por
horas. Foi então que ele torceu-se. Dor e prazer entretecidos. Alçou
o largo tórax; os ombros musculosos e como ciente do segredo da
sépia — bolsa de tinta atacada em seu ventre — abriu-lhe as veias a
dentadas. Extorquiu-lhe o sangue; gota a gota. Reduziu-a ao
esqueleto atirado ao canto com dois tufos de pelo no crânio. Baniu
os desencontrados cheiros, a tepidez dos primeiros ninhos da
primavera, o visgo, o acre odor, a textura. O raro. Misturou o
sangue rubro, efervescente, indefeso, à sepala arrebatada à papoula
iridescente; ao sêmen, o seu, de verdugo confesso; transvasando,
transfundindo entre dois mundos. Passageiro perene entre Lá e Cá.
Calou o verboso pensamento,
congestionado; não obstante a dor latejante em seu peito, em seu
sexo, partiu. Partiu-se entre o vermelho do sol que o cobria,
asfixiando-o e as gotas que sucediam-se atropelando-se, escorrendo
do ofuscante verde da enorme folha pendente do Pára-Brisa. Restavam
sombras e rastros em seu rosto, apenas. Se pudesse, parava. Rompia o
trato. Enunciava-se numa linha; num único traço.
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