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Jornal do Conto

Inez Figueredo


 


Organsim

(ao fascínio das palavras e das coisas)



 

Quando Olívia desapareceu, ele, por muito tempo ainda, extasiou-se com a graciosa silhueta dela a bailar sobre as dunas, varrendo as areias com a saia manchada de amor. Nem os sentidos, nem a mente impediram-no de traze-la a si. Alcança-la, una, no plano supremo do seu eu, lá, de cócoras à beira mar, foi um movimento belo e sincrônico, tal as gaivotas que a circundavam. Então ele também atingiu-se e, no cerne de si, aniquilou-se.

Ultrapassada a crença dele, no entanto, há um fato: Olívia lá, de cócoras à beira mar, com aquele olhar fixo nas vértebras do nada, a boca a exalar um forte cheiro de algas, cuspiu na espuma salgada que rolava na areia dourada daquele amanhecer. Cuspiu! Cuspiu uma saliva grossa, cor de barro, gosto acre, odor de maresia. Cuspiu como se cuspisse um desejo insano de regresso ao lar; de saudade desesperada daquele lá, daquela nação, daquela noite estrelada. Enfim, cuspiu a gritar por ele, o homem dela. E foi da saliva de Olívia, deitada, assim, no berço de espuma iridescente, que nasceu Organsim. Em volta do qual tudo começou.

Organsim cresceu, portanto, onde a espuma o levou: na loca de um baixio de coral, em companhia de um melro de escamas prateadas. Enquanto crescia percebeu que conhecer é recordar-se e se cria no que sonhava, criava exatamente como imaginava devesse ser criado. Assim, este conhecer ou reconhecer o induziu, um dia, ao cair do sol, a emergir.

Por algum tempo, como se uma grossa nata, uma crosta antiga, boiou sobre a água indolente e azul daquela vastidão até lamber a areia e sentir o sol áspero e fálico cutuca-lo às costas nuas, à beira do mar, isto é, no exato lugar onde sua mãe acocorara-se um dia. Pôs-se de pé triunfante e caminhou, por horas, sob outro amanhecer. Notou, então, de soslaio, que alem do fálico disco, enorme e dourado, a sua direita, à esquerda, cravado no manto azul que tremulava sobre sua cabeça, havia outro disco que espargia um suave tom prateado que o percebia, acatava e ratificava, enquanto um forte odor de esperma subia-lhe às narinas. De olhos fixos no nada do ondulante xale azul, Organsim chorou. E neste ato entendeu-se humano ser.

Nesse instante, tambem neste que estamos nós agora, aqui, como sempre em toda a estória, Organsim acolheu o inesperado: um enorme pássaro. Este, num vôo largo, baixou sobre si e bicou-lhe a testa entre os olhos. Bicou-lhe tantas vezes até cavar uma passagem e enfurnar-se-lhe por entre os sinuosos corredores da mente, do coração, das vértebras. Propondo-lhe crenças.

Ah, o abismo! Exclamou então Organsim. Descobrira a medida correta do humano ser: macho/fêmea, humano/divino. Dividido Desejoso.

Esperou que ao atingir a esfera do limite último já fosse possuidor da Palavra. A Exata. Aquela que iluminaria tudo que estivesse aquém e além do abismo. Dedicou-se por isso a refletir sobre a melhor forma de alcança-la e, desde então, cuidou em recolher o restolho do mar.

Num dia de sol claro e águas mansas alegrou-se ao encontrar na praia um baú escuro, crivado de búzios e enlaçado de algas. Enjeitado pelo mar.E foi como se o houvera reconhecido. Curvado sobre o passado nessa mesma noite,tão prateada, permitiu-se concluir de modo enfático:

É uma lástima que se pense que a projeção signifique a realidade!Estava frente ao mar, outra vez, sob os últimos arcos da velha casa tombada pela força das ondas, circundado pelo azul, a mirar a infinita infinitude da ilimitada vértebra do mundo. Pernas cruzadas, sentava-se num tosco tamborete de couro apoiando-se sobre a mesa quadrada de tábuas irregulares e manchadas. De vez em quando, levava aos lábios o grosso copo cheio do aguardente escuro fixando o velho baú, último resquício da incessante busca.

Organsim sempre soubera-se o primeiro fio aposto ao tear do mundo azul que lhe arrodeava. Buscara, pacientemente, o outro fio, no entanto, torcendo-se no mesmo sentido e depois retorcendo-se em sentido contrário. Era seu intuito mais caro orgasinar-se. Assim, lhe seria possível entrelaçar-se, multicolorir-se, formar urdidura. Ingerir o liqüor bipolar das nuances e tons secretos daí resultante era seu sonho recorrente. Induziu-se a crer, portanto, que se ali, naquele Baú, não estivesse o símile, em nenhum outro lugar estaria. Até aquela noite prateada e a chegada, de improviso, do insano vento que mudou o nome das coisas a razão e os fatos.

E foi assim que Organsim, de olhos semicerrados, espremendo o copo entre os dedos, alçando-se contra o insano vento, voz rouca abafando o ruído das ondas, cantou como se houvera capturado o infusível ofício da trama sagrada. Do sagrado da trama.

Libera-me, Marah,
desta amarga carne
grudada às trêmulas faces,
ao vago olhar.
Pois cada sol,
cada beijo, cada clara graça
jamais disse-me
das costas curvas,
do peso ao peito,
das mãos em garra.
Do alto custo
do humano viver.
Se deste ponto central,
o ápice da busca,
o cerne do anseio,
surgirá uma Palavra
importa-me agora
tão pouco saber.
Assim, bela amada,
sopra sobre meu ser
e apaga-me a flama.
Desse eu essencial
vela-me o saber.
 

E postou-se, audaz mastro, vela a tremular: nariz buscando o vento, o olho a perscrutar, o ouvido atento , as mãos em garra a implorar. E, assim, por largo tempo.

Quando o céu descobriu-se ao sol claro e incandescente, agarrou o machado que jazia inerte sob a mesa, desceu sua lâmina aguda várias vezes, violentamente, sobre o extático Baú, destroçando-o. Definitivamente.

Deslizou sobre o barranco que o separava das águas, acocorou-se à beira mar e cuspiu sobre a espuma. Encharcando de lágrimas as pálpebras silenciosas e escuras de Marah.

Ele era Organsim, absoluta impossibilidade no reino do formulado. Apenas um fio de seda. Nada mais que o primeiro ao tear.

 

 

 


 

08/05/2006