Iza Calbo
Amor morto
Morto, de novo, o amor. Pelas mesmas
palavras e mãos. Com a mesma impiedade da primeira e da segunda
vezes. A morte unilateral. Feita dela por ela mesma, enquanto o
sonho cavoucava as promessas. O olhar frio. Diferente do de manhã,
quando a boca e o riso ensinavam a delícia das ternuras. Não houve
tempo para reação. Nem mesmo uma chegou a ser esboçada. O escárnio,
a dor lapidada, o desejo incinerado. Depois, num único golpe, o amor
esparramado no campo seco onde antes as margaridas pousavam nos pés
dos amantes.
O corpo doeu inteiro, mas a alma, esta
dama indolente, sequer teve tempo de assimilar a dor. Feita em
pedaços, como um espelho. Irreparável. Espalhada, em cacos, por
todos os espaços deixados vazios. E foram tantos. O sono não veio
para disfarçar a mágoa. Não era sonho. O amor é que era morto. Ele
todo. Em todo o seu esplendor de vida e vontade de viver. O amante,
que desferiu o golpe, fechou os olhos na rede. Parecia uma criança
dormindo. E o amor morto, ainda vagando na sala e teimando em sair
dali, olhava o semblante do amado e, mesmo assassinado outra vez, só
via o anjo que amava. Que amava.
Quando a noite se esticou pela casa e
a lágrima molhou a face da alma, a amada se desfez. Não tinha mais
nada dentro de si. O coração, brutalmente arrancado e errante,
pulsava em semitom. Cavaleiro enlouquecido das quimeras, travava com
as próprias fantasias o diálogo com sabor de enterro e perda. O amor
morto ficou ali, adormecido em sua própria insensatez, olhando o
anjo que não era anjo ou que talvez fosse, mas se negasse a ser.
Sozinho e esquecido, não fez as malas nem os arranjos das flores
mortuárias. Indigente, o amor morto foi jogado na cova rasa do
terreno seco das margaridas roubadas.
Rouco, quase afônico, ensaiou o nome
do amado. Ouviu um grito retumbante e deu para trás. Queria, do seu
assassino, a mágica do tempo de volta. Não teve. Deixou, então, a
casa e olhou cada olhar com o qual cruzou na rua. Quantos eram os
amores mortos? Quantos os que matavam o amor? Não sabia. Não soube
avaliar nem perceber neste jogo de íris perdidas a verdadeira face
de quem ama e de quem mata. Tomou, então, um resto de sol nos braços
e evadiu.
Salvador, 2000
Iza Calbo é jornalista e
escritora; autora de Capítulos e integrante da equipe de A TARDE.
[in A TARDE, 07.07.2001]
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