Izacyl Guimarães Ferreira
Uma lição de Astrid Cabral
Ouvi certa vez de um
autor de textos obscuros e herméticos (que não nomearei por uma
questão de elegância e discrição) que Manuel Bandeira é um bom poeta
mas “muito simpleszinho”. Mas a lição maior, se possível destacar
entre as várias de sua obra qual seja a maior, é precisamente a da
simplicidade, a de não ser obscuro, salvo quando aqui ou ali
preferiu deixar numa área de sombra ou de ambiguidade algum verso
seu, ou algum poema, aspecto que já foi tratado por mais de um
leitor crítico.
Em meus não
acadêmicos comentários e leituras venho, repetidamente até,
destacando a importância que dou ao que considero uma virtude do
artista, sua clareza. Ao faze-lo não excluo o valor, a beleza ou a
importância de textos que não primam por esta qualidade – barrocos,
surrealistas, polissêmicos etc. Apenas faço uma escolha de leitor e
em tal escolha estou bem acompanhado. Quero entender porque me
emociono, pois entendendo me emociono mais.
O livro Rasos
d´água, de Astrid Cabral é um exemplo deste comportamento
autoral. Trata-se de poesia de alta qualidade, carregada de emoção,
de sofrida experiência e de quotidiana vivência de pequenas e
grandes dores, tudo vindo expresso com aberta franqueza É livro
marcado pela dor de viver, entre as alegrias que todos temos,
marcado pela sobrevivência enfrentada à morte de outros. A
fugacidade, a perda, a velhice são mostradas às claras. Com pudores
e delicadezas, mas ditas sem artifício. Exemplos: “Sim. Sobra-te a
vida./ Mas onde os braços / para apertá-la?” // “O que se perde –
não se perde - / reverte / zero onipresente.” // Mas esta dor não é
algo / que se veste ou se despe./ É coisa que respira comigo/algo
por dentro da pele.” // No curral ainda nos sobra/ a noção do
tesouro perdido/e essa ração de memória/ é a esmola que nos cabe.”
Quem lida com
literatura e conhece Astrid Cabral, sabe que foi mulher do também
poeta Afonso Felix de Souza, morto há poucos meses, e perceberá que
muitas das referências dos poemas do livro têm a ver com sua perda.
Que se soma à dor geral da brevidade de tudo, nessa “ração de
memória” que é consolo apenas, e pouco, “zero onipresente”. O livro,
há pouco premiado pela Academia Brasileira de Letras, é também
dedicado ao filho Giles, “presença e pranto.”
O que Astrid chora,
discreta e sem sombras, é também essa água ininterrupta que
navegamos. Ela, Astrid, seu oceano e seu rio, sua lágrima, mas
também a neve alegre e as descobertas das viagens. A apropriação da
água, desde o título ao texto em prosa que encerra o livro é uma
metáfora clássica, tratada aqui com personalidade e uma abrangência
que dá organicidade ao livro, a que não falta alusão e
reconhecimento do tema. Astrid inverte mar e rio (“Escalas”) numa
vaguíssima lembrança de Manrique e glosa Eliot no pungente “Morte
por água”, episódio contado deixando no ar certo mistério.
O livro começa com
um poema desses irretocáveis, de que é rico todo o conjunto. Seu
título, “Coração couraçado”. E diz:
Tempestades
em oceanos
ou em copos d’água
e não peço a Deus balsas
barcaças nem praias.
Só um coração couraçado.
Desses que no lombo
das ondas vão sem tombos
o convés em festa.
Iluminado.
Seu curso fluvial e
marítimo se encerra com a narração “Águas represadas” (atente-se
para a riqueza do adjetivo ao ler-se o texto). Sábia escolha, a
prosa. Não que o tema – longa memória de vida entre águas – não
pudesse ser tratado em poesia, pois é o que o livro faz de ponta a
ponta. Mas encerrá-lo desta forma é como se a poeta dissesse desse
modo, quase um diário de jovem, que sua vida posta em versos foi
vivida de verdade, não há invenção. Luz e sombras a vida, “Lavo
minha alma em todas essas águas livres e me comprazo .../ E agradeço
diariamente a serena alegria do corpo limpo e da sede saciada Eu,
também água.”.
E o leitor,
emocionado, agradece a navegação por esse rasos d’água, textos nos
quais Astrid Cabral reafirma a beleza e o vigor de sua literatura,
em livro que é uma lição de transparente e cristalina poesia.
Leia obra poética de Astrid Cabral
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