Izacyl Guimarães Ferreira
Macau, de Paulo Henriques Britto :
Nihilismo, humor e metapoesia
Autor de poucos
livros de poucos poemas de poucos versos, notável tradutor de
Wallace Stevens, Ted Hughes, Elizabeth Bishop, entre outros,
ex-estudante de cinema, o ganhador do mais valioso prêmio pago até
hoje no país a um livro de poesia, Paulo Henriques Britto, muito
mais que um poeta excelente é uma dicção nova – tão formalmente
disciplinada quanto inventiva, uma lírica indagadora, de “trovar
claro”, como titulou seu livro anterior.
Mas, como todo poeta
de peso específico, não é o que Bandeira dizia de Murilo – “um
bicho-da-seda, que retira tudo dele mesmo”. PHB se insere numa linha
que passa por João Cabral, aludido no título do metapoema
Fisiologia da Composição, linha que penetrou no cerne da poesia
do pensamento, típica de Wallace Stevens, recorda certo meditar
sonoro de Pessoa, toca de leve o humor que não desmerece Drummond e
transcende atmosferas do que pretenderam sem êxito modernistas e
marginais notórios. E de passagem adjetiva insolitamente como Murilo
e condensa a emoção com a brevidade de Emily Dickinson.
O título do livro
ganhador do Prêmio Portugal Telecom – Macau – é mais que uma
rima feliz para mal no poema II dos “Sonetos Simétricos”. A
possessão portuguesa na China é metáfora extraordinária do que pode
ser a poesia de PHB. Língua nada hegemônica é o nosso idioma, arte
nada popular é a poesia, espécie nada privilegiada é o homem se não
tem a proteção de um deus, uma utopia, qualquer esperança de
redenção.
Ilha é o poeta, ilha
é a língua em que escreve, ilha é o homem num mar feito de
“minúsculos plânctons” que compõem a realidade que o circunda,
imóvel no “cais ínfimo e úmido do eu”.
Mas, e o humor? já
perguntava o gauche Carlos e com fina elegância ( ainda que nem
sempre) responde PHB. Porque “a dor é kitsch” e “só o raso é cool”,
há que seguir adiante, sem mergulhar fundo demais.
O humor percorre o
livro ao lado do nihilismo, e vêm os dois, tão reiteradamente
expressos, que não chegam, um a desatar o riso, outro a desatar o
pranto. O leitor aceita esse jogo de luz e sombra como o adulto que
é aceita a mortalidade.
A qualidade de sua
dicção, a experiência que em entrevista revela ter ganho em seu
ofício de tradutor, mais a autenticidade da vocação, impedem que
marcas externas passageiras, visíveis neste como em outros livros –
certo ludismo da geração à qual pertence e cronologicamente o
enquadra, certa facilidade de fala – deturpem a boa mescla de pesar
controlado e prazer do riso, entre inglês e carioca, que esse poeta
sabe tão bem manejar.
Tais características
são essenciais na abordagem metapoética, livrando-a de vezos
didáticos ou altissonantes:
Também os anjos mudam de
poleiro
de vez em quando, se rareia o alpiste
indeglutível que é seu alimento.
Porém você não se conforma, e
insiste,
procura em vão possíveis substitutos
que tenham o efeito de atrair de volta
esses seres ariscos, esses putos
que se recusam a ouvir os teus apelos,
como se fossem mesmo coisas outras
que não a tua própria vontade de tê-los
sempre a postos, em eterna prontidão,
a salpicar na tua boca ávida
o alpiste acre-doce da ( com perdão
da péssima palavra ) inspiração.
Parece evidente que
os anjos são rilkeanos, como a “fisiologia” referencia o João Cabral
da psicologia da composição, uma influência admitida. Noutro texto,
diz que é claro que é difícil escrever, fala de suor e de acaso,
palavrinha cabralina mas também mallarmaica. PHB é poeta culto,
professor de literatura, mas que rejeita assumir posturas críticas,
como nega aos críticos poder de escrever sextinas. E se sonetiza o
faz heterodoxamente: seu apego às formas fixas é mais um parâmetro
que uma lição observada rigorosamente.
Parece importar-lhe
tanto a forma quanto a matéria que ela molda, e embora a dor seja
“brega” ele a registra, como aconselha Auden : que a dor seja feliz
e dita com beleza. Não basta o sofrimento se ele não ultrapassa o
momento, longo que seja, para transformar-se em expressão poética.
Exemplo, esta “epifania trivial”:
Seria trágico se não fosse bobagem.
Seria uma solução se houvesse um problema
possível de resolver. Seria uma imagem
poética se houvesse espaço pra um poema.
Estando as coisas como estão, não é mesmo nada.
O que é uma pena. Pois o gesto em si é belo
como uma ruína, ou uma xícara quebrada.
( Mas não é bem gesto e sim a intenção de fazê-lo.
É mais a idéia de uma coisa que uma coisa,
apenas um projeto, e a plena convicção
de que mais nada vai acontecer depois,
a consciência de que a pseudo-solução
há de doer a vida inteira na lembrança
como um castigo injusto imposto a uma criança.)
Cabe assinalar o que
a edição (Companhia das Letras) informa: em sua quase totalidade os
poemas são inéditos apenas em livro, publicados que foram ao longo
dos anos em diversos periódicos.
Soaria naturalmente
adequado o elogio a uma obra recebida com o aplauso deste Macau.
Aplauso de crítica e “de bilheteria”, a que o autor, com seu
característico humor, reduz a uma fama de 15 minutos. Quem o
acompanha desde a estréia, com Liturgia da matéria, seguida
de Mínima lírica e Trovar claro, quatro livros só, ao
longo de 22 anos, saberá que Macau não é um acaso, um lance de
dados. Sim haverá quem rejeite aspectos “perecíveis” em sua poética,
tais os referidos acima, como sejam falas no limiar da prosa, ou
dentro dela, a gíria ocasional, certo gosto pelo corte “popular”
abrupto num momento, digamos, “delicado”, como os “putos” anjos do
poema transcrito. PHB tem antecedentes (Murilo, Drummond) e direito
adquirido para transgredir como queira. Se tais aspectos, que já li
condenados por mais de um crítico, são traço de época ou de autor, o
tempo dirá. (Não conheço poeta cem por cento puro...) O que PHB nos
traz é personalidade, moeda rara, e coerência, e a capacidade de nos
fazer solidários com sua dor, que não tem dono, e com seu humor, ai,
tão necessário.
Antes da divulgação
do resultado do concurso – realizada exemplarmente numa solenidade
pública com os votos abertos diante da platéia – Macau, de um
autor menos exposto que a maioria dos demais finalistas, era escolha
pouco previsível.
(Louve-se a forma da votação e sua comunicação, tão diversas das que
marcaram o controverso resultado do ano anterior.)
Se um concurso, como
qualquer, e também as antologias, sempre dão e darão lugar a
divergências opinativas, algo é certo no prêmio deste ano: nós
estamos diante de um poeta incomum, de um livro cristalizado com a
paciência de quem domina seu ofício e sabe quando e como deixar para
o leitor a decantação da emoção que o motiva – essa emoção quase
física, dizia Borges, que vem junto com o desfrute da leitura.
Fechemos como ele
fecha o livro, com uma palavra que dá ao homem o orgulho de sua
amorosa residência terrestre.
Acalanto
Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,
despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;
e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos
em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.
E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.
Izacyl Guimarães Ferreira escreve, traduz e comenta poesia.
Leia Paulo Henriques Britto
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