Izacyl Guimarães Ferreira
Ruy Espinheira Filho:
Elegia de agosto e outros poemas
Ou o elogio da saudade. Ou os
acontecimentos do soneto. E mais: a raiz da fala na dissimulada
facilidade que é forma rigorosa, que é domínio técnico porque quando
um poeta de verdade escreve tudo isto vem junto: algo a dizer, ainda
que já dito, algo que já sabemos e não sabíamos saber, algo que
ouvido (o bom poema é também a sonoridade que traz) parece
confidência, algo que reorienta nossa leitura, algo que produz
prazer, reflexão, necessidade de reler. Catarse.
Em texto recente Affonso Romano de
Sant’Anna nos dizia que há na poesia corrente do país um “lirismo
envergonhado”. Penso que isto seria uma das muitas consequências da
lição mal aprendida do grande João Cabral, senão, pior ainda, do
concretismo, essa enfermidade da linguagem, que resiste a toda
vacina.
Ler a poesia de Ruy nos salva da perda
de tempo que é o só folhear da tanta filosofice versificada que
assola a internet e mesmo as livrarias, do tanto lirismo
envergonhado detectado por Affonso. Porque eis aqui um lírico de
peito aberto e de língua franca, que coloca em paz os nossos
corações aflitos de saudades, saudosos de ritmo e boa rima, saudosos
de verso. Pois já se considera por aí uma “poesia em versos”,
categoria entre outras, tão numerosas que a memória não as guarda.
Ruy escreve versos. Em poemas longos e
curtos, livres e não. Ruy faz do soneto uma composição aberta, entre
os rigores da forma em 14 versos rimados, distribuídos 4-4-3-3, mas
dispostos num fôlego só, que o “emjambement” faz fluir entre rimas
finais e internas, com sonoridades naturais, armadas como sonata.
Sim, porque um soneto é uma sonata: proposição, desenvolvimento e
arremate. É como Bandeira gostaria de escrever, confessou, mas sabia
que era assim que escrevia. Não cito Bandeira à toa. Ele está na
raiz de Ruy, como Drummond. Nutrientes, os dois, do que Ruy vem
fazendo há mais de 30 anos. E é uma consistente construção
alicerçada na solidez da língua, no lirismo brasileiro feito de
emoção e também de humor, de memória pessoal e de sentir geral. Que
abre a intimidade do poeta para o leitor.
O colombiano Giovanni Quessep define a
poesia como “metáfora da alma”, o que somos além do genoma, do
verbete ou da carteira de identidade, da impressão digital. Alma, o
que ficaria do que se perde. Metáfora, esse espelho inquebrável do
que reflete. Assim essa poesia. Grande parte da fortuna crítica de
Ruy (de que apenas conheço uns poucos textos) parece pelos títulos
insistir na preponderância dos temas da memória e da nostalgia com
que ela é expressa. Correto, e tal característica faz de sua poesia
uma expressão brasileiríssima, já que somos assim quando não nos
envergonhamos do que sentimos.
Drummond escreveu “esquecer para
lembrar”, uma forma lúdica de tratar a memória em sua longa
sequência do “boitempo”. Ruy lembra para não esquecer, diretamente,
e seu lembrar subverte a “lógica” do tempo linear, porque “o passado
não passa” – estupendo verso seu – e é o que somos. Somos um corpo e
um passado, uma memória e uma esperança. E Ruy nos leva a jogar com
“alguns rapazes”, seção do livro que é cronicar de amigos mortos e
somos todos jovens de novo. Dança com moça que já não é e dançamos
os três. Porque é esta a chave de sua poesia: tudo continua sendo
porque narrado como se estivesse a perdurar, ainda que a perda seja
a elegia de quase todo o livro.
Preciosa a epígrafe de Borges:
“Convertir el ultraje de los años/ En una música, un rumor y un
símbolo.” Tal como fazia o referenciado CDA do título e dos
magníficos poemas iniciais, dos melhores escritos em louvor de nosso
grande ausente mineiro.
Não citarei versos destes ou de outros
poemas. Uma resenha não é um estudo. Mas como escreviam alguns
críticos de rodapé, quando haviam, insto o eventual leitor a comprar
este livro, que além da excepcional poesia traz os juízos críticos
de Ivan Junqueira e Miguel Sanches Neto, e a lista, completa até
então, da fortuna crítica de Ruy Espinheira Filho. A edição é da
Bertrand Brasil.
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