Izacyl Guimarães Ferreira
Izacyl Guimarães Ferreira
entrevista o poeta Lêdo Ivo
para o jornal da UBE / jul / 2003
Nenhum leitor de poesia desconhece
este nome, dos maiores de nossa história literária e da língua. A
lista de seus livros quase encheria a página e sua fortuna crítica
tomaria nosso jornal de ponta a ponta. Mas cabe ao menos lembrar uma
trajetória que começa em 1941 com um poeta de 17 anos ainda inédito
em livro participando de um Congresso de poesia, publicando aos 20
seu livro “As imaginações” e logo saudado pela extraordinária e
atenta crítica de então como o que ele próprio se diz ao final desta
entrevista: um mestre. Tanto quanto nos prêmios que recebeu, na
presença acadêmica ou no conhecimento além de nossas fronteiras em
traduções e festivais, sua consagração se mede pelo reconhecimento
de seus pares e leitores. Uma consagração que o acompanha desde
jovem e a cada manifestação de seu talento, em poesia e prosa, como
autor de romances, ensaios, memórias e de crônicas. Lembremos, como
exemplos, as marcas de alguns livros seus: “Acontecimento do
soneto”, “Ode ao crepúsculo”, “Ode e elegia”,“Linguagem”, “Um
brasileiro em Paris e O rei da Europa”, “Mar oceano”, “Crepúsculo
civil”, para ficarmos só com os textos poéticos, que reafirmam um
autor em constante renovação. Apesar de já haver publicado
antologias e reuniões de títulos, está na hora de algum editor
brindar-nos com sua poesia total “até agora”, pois esta é uma obra
ímpar, de leitura e presença definitivas na poesia brasileira. E
para a UBE é uma honra que Lêdo Ivo figure entre os agraciados com o
troféu “Juca Pato”, quando escolhido intelectual do ano, em 1990,
com expressiva votação de escritores de todo o país. Eis o que
conversamos. [Izacyl].
Izacyl - Poeta várias vezes ouvido, será difícil não repetirmos
assuntos. Mas a boa palavra merece ser relida. Então: se você
tivesse que fazer seu “itinerário de Pasárgada”, que traços seriam
os mais definidores de sua aventura poética?
Lêdo Ivo - Presumo que, ao longo do meu longo percurso, eu já tenha
me ocupado do que você chama de minha Pasárgada. Em livros como
“Confissões de um poeta” e “O aluno relapso” podem ser encontradas
inumeráveis reflexões sobre a criação poética em geral e o meu
processo de criação particular, e ainda informações minuciosas sobre
a minha trajetória pessoal. A memória pessoal e geográfica ocupa um
grande espaço no meu trabalho, já que me considero, e na verdade
sou, um poeta situado – isto é, um poeta que assinala em sua obra a
sua origem e procedência, o seu lugar de nascimento, o seu
sentimento de ancestralidade. Nasci em Alagoas, num Nordeste úmido
que se diferencia de vários outros Nordestes. Minha cidade natal,
Maceió, era durante a minha infância um movimentado porto
açucareiro. Os navios marcaram a minha primeira visão do mundo, e o
mar significava a porta da evasão. Coube à vocação definida e ao
aprimoramento cultural (quando menino, eu já sabia francês e latim)
converter essa experiência vital e matinal em expressão e tentativa
de comunicação – isto é, em linguagem. A operação poética é uma
subjetividade transformada em objetividade e distanciamento por um
uso especial e decerto supremo da palavra. A poesia, não nos
esqueçamos nunca, é uma arte.
Izacyl - Não sei quem disse – Bandeira? Dr. Alceu? Álvaro Lins? Quem?
Alguém disse que numa geração com nomes longos e versos curtos Lêdo
Ivo era um poeta de nome curto e versos longos. Mas você mudou e fez
de tudo e muito. Versos longos e curtos, poemas longos e curtos,
livros temáticos e de coleção. O que o distingue dos “45” e o que o
identificaria com esta tão pouco estudada geração?
Lêdo Ivo – Foi Sergio Buarque de Hollanda quem afirmou que,na
chamada e caluniada e famigerada geração de 45, havia numerosos
poetas de nomes compridos e versos curtos, como José Paulo Moreira
da Fonseca, João Cabral de Melo Neto, Péricles Eugênio da Silva
Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Afonso Felix de Sousa, Fernando
Ferreira de Loanda e outros mais, e havia um poeta de nome curto e
versos longos, que era eu. Essa observação juncada de humor (pois
Sergio, grave e austero quando escrevia seus ensaios magistrais, era
irônico e cheio de humor no contato pessoal) corresponde a uma
verdade literária e estética. Ela documenta e proclama a minha
diferença, o que eu poderia pomposamente dizer que é a minha
singularidade, a minha marca pessoal e intransferível. Eu era, entre
os meus jovens pares, a ovelha negra, o chamado “enfant terrible”.
Várias vezes o Péricles Eugênio me expulsou da geração de 45,
alegando indisciplina e mau comportamento de minha parte.
Conforta-me que esse sentimento de transgressão me tenha acompanhado
até agora. Quando começamos a nossa vida literária, somos uma
multidão. E, quando a noite desce, descobrimos que estamos sozinhos.
Somos solidão. Você tem razão ao observar que a geração de 45 é
pouco estudada. As universidades são gaiolas onde se empoleiram os
papagaios pedagógicos: os mestres das repetições, da via única, da
versão venerável. Há meio século que as universidades de São Paulo,
as PUC e outros estabelecimentos congêneres dizem sempre a mesma
coisa, numa melopéia enfadonha e talvez obsessional. São latifúndios
de omissões e exclusões. Não desencarnam de Mario de Andrade e
Oswald Andrade, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Lembro o verso de
Mário Quintana: “Meu Deus, mas tu não mudas o programa!” Essas
cornucópias de apostilas ignoram que literatura e poesia são
diferença, variedade, pluralidade e colisão. E, centradas nos
majestosos gatos-pingados que se tornaram o seu ganha-pão, elas
ignoram ou encobrem uma vasta área da criação poética. Para me
cingir apenas a São Paulo, aponto algumas vítimas desse silêncio
homicida: Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Menotti del Pichia,
Afonso Schmidt, Monteiro Lobato, Alcântara Machado, Cassiano
Ricardo, Fernando de Azevedo, entre muitos outros. Como eles não são
estudados, não existem, já que literatura é memória e pesquisa.
Izacyl - Do modernismo de 22 até hoje, nossa poesia sofreu grandes
mudanças, não acha? O que, de importante, mudou nestes 80 anos,
quase o tempo de sua rica experiência de autor e de leitor?
Lêdo Ivo - Para quem aprecia e avalia o Modernismo de 22, a
evidência que recolhe é a de que o Brasil do século XX não foi o
século do modernismo. Foi o século de vários ismos, do
parnasianismo, do simbolismo, do modernismo paulista, do vigoroso
modernismo do Nordeste, que produziu José Lins do Rego, Rachel de
Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jorge de Lima e Gilberto
Freyre. Esta visão global é que deve prevalecer, e não uma uma fatia
cronológica ou topográfica. As mudanças foram, realmente, notáveis.
Os ismos brasileiros são produtos de importação, operações
aduaneiras provocadas pela chegada dos navios. E o tempo dos ismos,
das experimentações sucessivas já acabou na Europa, nos grandes
centros de criação ocidental. Os herdeiros de tudo substituíram os
experimentalistas. Após a segunda Grande Guerra, o escritor e o
poeta deixaram de pertencer a grupos, a tribos, a movimentos e se
converteram em figuras isoladas. Por outro lado, a emergência de
novas linguagens audio-visuais e a dominação do mercado fizeram com
que o poeta deixasse de ser uma figura visível e até emblemática da
sociedade para se reduzir a uma figura clandestina. Hoje, quando
ocorre uma proliferação anômala e incontrolável de livros de versos
(e de não versos), graças especialmente às editoras nanicas e de
fundo de quintal, a poesia se tornou praticamente invisível.
Antigamente os jornais publicavam poemas, estabelecendo assim uma
comunicação direta e imediata entre o poeta, o público e o
observador literário. Hoje eles publicam artigos e ensaios sobre
poesia, escritos habitualmente por pedagogos famélicos, mas jamais
estampam um poema. Atualmente, o jovem poeta está condenado ao
silêncio e à rejeição prévia. E como a crítica literária acabou
(temos apenas um crítico literário respeitado e qualificado, que é
Wilson Martins, para 180 milhões de habitantes), não existe uma
corporação crítica para reconhecer o valor ou o desvalor do
estreante.Quando surgi, na década de 40, havia críticos como Álvaro
Lins, Alceu Amoroso Lima, Sergio Buarque de Hollanda, Fausto Cunha,
Afrânio Coutinho, Sergio Milliet, Wilson Martins, Temístocles
Linhares, Roger Bastide e tantos outros. Hoje, o jovem poeta não
pode ser reconhecido porque falta à literatura brasileira o crítico
de rodapé de jornal, aquele que é o primeiro intermediário entre o
criador literário e o leitor. Assim, o jovem poeta tem que se
contentar com o resenhista famélico monitorado pelas conveniências
mercadológicas.
Izacyl - E na poesia mundial, quais as marcas e os nomes de maior
significação para a história da poesia do século XX? Por quê?
Lêdo Ivo – Um poeta é uma soma da vocação, do talento genuíno, com o
aprimoramento intelectual, a cultura e uma desejável curiosidade
intelectual, sempre alerta e constante. Tenho horror aos poetas
caipiras ou semi-analfabetos. E, dentro de minha convicção, presumo
que um bom poeta não poderá dispensar a lição de Homero, de Dante,
de Shakespeare, de Quevedo ou de Camões – isto é, da grande e
indispensável herança cultural e poética do Ocidente. Em poesia,
temos que nos render à lição de T.S.Eliot. Um poeta é a união ou
fusão do talento individual com a tradição. Ungaretti uma vez me
disse que nem todo século produz um grande poeta. Ele estava
enganado. Além dele mesmo, o século XX produziu outros grandes
poetas, como Valèry, Eliot, Rilke, Antonio Machado, Lorca, Fernando
Pessoa, Neruda, Apollinaire, Yeats e tantos outros. No Brasil,
Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade avultam como os dois
grandes pilares de nossa poesia. Quanto ao “por quê” de sua
pergunta, a resposta está nos livros dos poetas.
Izacyl - Mestre que é, que sabedoria passaria aos poetas muito
jovens, aos que ainda não aprenderam sozinhos ou “de repente”, como
um dia disse o Rosa?
Lêdo Ivo – Não posso responder à sua pergunta. Eu era mestre quando
tinha vinte anos. Agora, quando me aproximo dos 80, sou um aluno, um
eterno estudante.
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Lêdo Ivo
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