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João Alexandre Barbosa


 

Um pomar às avessas

 

É uma poesia que vem de longe, de muito longe. E não me refiro apenas ao fato de que Micheliny Verunschk, nascida em Recife em 1972, vive na fronteira do sertão pernambucano, na ensolarada e bela cidade de Arcoverde.

A distância de que falo tem antes a ver com o tempo do que com o espaço e é elemento intrínseco desses poemas agora reunidos. Uma distância no tempo que confere a esses poemas a sua originalidade, transformando a poeta numa presença singular por entre o caos da atualidade. Um pouco na direção daquilo que Paul Valéry, em um dos seus textos sobre Mallarmé:
 

É que a poesia vincula-se, sem nenhuma dúvida, a algum estado dos homens anterior à escrita e a crítica. Encontro, pois, um homem muito antigo em todo o poeta verdadeiro: ele ainda bebe nas fontes da linguagem; inventa “versos”, um pouco como os primitivos mais bem dotados deviam criar ”palavras”, ou ancestrais de palavras.
 

Neste sentido, é possível dizer que aquilo que a poesia articula em termos temporais é triádico; um tempo do poeta, com suas circunstâncias e acidentes biográficos; um tempo da poesia, que transcende aquelas circunstâncias e acidentes e se radica na própria intemporalidade da existência da linguagem poética, por onde é relida a tradição, e um tempo do poema que concretiza qualquer tipo de abstração com que se envolve o poeta e a poesia.

O homem muito antigo, de Valéry, o seu poeta verdadeiro, parece ser, portanto, aquele que se posiciona no vértice do triângulo, fazendo com que a poesia irrigue, com a mesma intensidade, cada um de seus lados.

Sendo assim, quando Micheliny Verunschk intitula de Geografia Íntima do Deserto a reunião de seus poemas, ao mesmo tempo em que recupera para um novo espaço uma certa tradição da poesia – que, sobretudo com João Cabral da Psicologia da composição, busca, na trilha de Paul Valéry, por assim dizer, esterilizar o campo da poesia, tal como se afirmava como aspiração do personagem Anfion, numa das partes daquela obra -, insere uma intimidade, com todas as suas modulações hesitantes, por entre uma possível geografia do deserto.

 

Não é, portanto, o que escreve ou deixa de escrever o deserto, sua geo-grafia, aquilo que importa: é como, deserto, campo de presumível esterilidade, deixa aflorar figurações da intimidade. Ou, para citar João Cabral da Fábula de Anfion:
 

Sua mudez está assegurada
se a flauta seca:
será de mudo cimento,
não será um búzio

a concha que é o resto
de dia de seu dia:
exato, passará pelo relógio,
como de uma faca o fio.

 

Ou, como está, ainda de modo mais explícito, na oitava e última da Psicologia da composição:
 

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas
(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
cai, fruto!

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras).

Cultivar o deserto
como um ponto às avessas:
então, nada mais
destila; evapora;
onde foi a maçã
resta uma fome;

onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.

 

As três partes deste livro – todas precedidas de fragmentos de um texto que vai se organizando como fábula de desaparecimento e de final apreensão pelo rebaixamento daquilo que, acariciado como obra de arte autêntica, não era senão reprodução barata – operam no sentido de instaurar, por entre o deserto, aquela outra ordem cabralina em que seja possível cultivar um pomar às avessas.

 

E esta ordem, poética por excelência, não senão a de deixar a linguagem encontrar, depois da esterilização a que foi submetida, o ângulo de abertura apropriado através do qual seja possível nomear o tumulto da experiência.

 

No entanto, passada pelo crivo daquela esterilização, a nomeação do tumulto não é uma nomeação tumultuada: a experiência que se configura através da linguagem, e que é o poema lido pelo leitor, é, para dizer com T. S. Eliot, o correlato objetivo e sensível da nomeação poética.

 

Ou, para dizer de outra maneira, entre experiência e nomeação poética passa uma espécie de tranqüila adequação, de onde resulta o singular decoro destes poemas: a intimidade é, por assim dizer, conservada nos limites da discrição, sem que, em nenhum momento, seja diminuído o impacto de sua figuração.

 

Eis, portanto, um interessante e aparente paradoxo: uma poesia da intimidade, como esta sem dúvida é, não é necessariamente uma poesia intimista ou de intimidades.

E isso porque a intimidade está antes no difícil e delicado jogo entre a experiência pessoal e a construção pela linguagem de um espaço de traduções recíprocas, em que as reverberações léxicas, sintáticas e sonoras não deixam brechas para o caos que costuma se apossar das expressões de intimidades.

 

Uma poesia íntima, mas do deserto, e não do ou da poeta como subjetividade que venha se escancarar diante do leitor por uma linguagem de desafogo desabrido. Uma intimidade que vem preencher aquela severa forma do vazio, tal como percebida por João Cabral, sem que ocorra o seu esquecimento; ao contrário, existindo intensamente nas dobras de uma outra ordem a que o poeta chamou de pomar às avessas.
 

Leiam-se, por exemplo, os dois poemas que constituem a parte Geografia Íntima do Deserto, que dá título ao livro: O corpo amoroso do deserto e A presença dolorosa do deserto.

No primeiro, o deserto é nomeado através de alguns de seus atributos e serve para estabelecer um sistema metafórico em “areias cortantes”, “água cristalina” da miragem, “escorpiões de fogo e sol”, traduzindo a grafia do deserto, fisgam os atributos da paixão que, começando por um “corpo branco e morno” e tendo a força de ferrões, criam mais o desejo do que a realização, como está dito nos últimos versos:
 

Ferroam a minha pele
escorpiões de fogo e sol
com seu veneno
e vejo,
magoada de desejo,
os grãos tão leves
indo embora ao vento.

 

de tal maneira se embaralham os atributos – do deserto e da paixão – que o “corpo amoroso do deserto”, título do poema, cria a certeza de um outro corpo, “(que eu deveria dizer sereno)”. Este corpo, o leitor preenche, como uma severa forma do vazio, pela leitura das tensões de intimidade que acena, do modo mais discreto possível, para o – embora malogrado – ápice da paixão “magoada de desejo”. Por fim, nomeia-se um último atributo do deserto: o vento – “indo embora ao vento”.

Já no segundo poema, embora a criação de símiles seja o núcleo impulsionador do texto – “Como uma pérola / ou um gesto no vazio. / Como o amargo azul / e tudo quanto há de ilusório.” -, há mais radicalidade metafórica do que no poema anterior, sobretudo por meio da redução que se dá dos atributos possíveis do deserto pela condensação que está no primeiro e oitavo versos: “Teu nome é meu deserto.”
 

Não mais, como no primeiro poema, uma leitura de preenchimento daquela severa forma do vazio cabralina, mas a asserção primordial e definitiva de uma identificação: entre nome e deserto, o que agora se relaciona, como sentido e percepção, “dentes agudos”, “sóis raivosos”, “suas letras”, “setas de ouro e prata”, já não são atributos externos do deserto, mas funções de uma intimidade radical: “incrustado no meu próprio território”, como está no terceiro verso.
 

Mais uma vez, assim como ocorria no poema anterior entre deserto e paixão, aqui algo semelhante se dá entre nome e deserto, isto é, uma intensa reciprocidade, de tal maneira que se esgarçam os referentes pela instauração da metáfora.
 

Releia-se, para exemplo, a segunda parte do poema, aquela que se inicia com o oitavo verso:
 

Teu nome
é meu deserto
e ele é tão vasto.
Seus dentes tão agudos,
seus sóis raivosos
e suas letras
(setas de ouro e prata
nos meus lábios)
são meu terço de mistérios dolorosos.

 

Embora, de imediato, a qualidade de vastidão refira-se ao deserto, no poema já não se tem certeza: ela pode estar sendo atribuída legitimamente ao “nome”, tanto quanto aos “dentes”, “sóis” e, sobretudo às “letras” porque, transformadas e, “setas”, são repetidas ritualisticamente como um “terço de mistérios dolorosos”.
 

Deste modo, creio que a leitura mais detida desses dois poemas deixa ver um mecanismo essencial de construção dessa poesia de Micheliny Verunschk, que a vincula ao tempo da poesia referido no início: não é um a poesia de atualidades ou, como já disse, de intimidades, mas uma poética que cava fundo nos dispositivos da linguagem, reatualizando aquilo que é, para sempre, traço fundante da poeticidade, ou seja, o alcance e os limites da própria nomeação.
 

Assim, por exemplo, é possível encontrar, em numerosos textos deste livro, invenções de imagens que realizam, com grande beleza e propriedade, a função da poesia como instrumento privilegiado daquela nomeação.

É, para citar apenas alguns, aquilo que este no poema Seca (ou O Boi e a Quaresma) em que o sol é percebido pelo animal como “imenso carrapato / agarrado no azul”, ou em todo o poema Face, em que os “ferrolhos” e as “abelhas”, da primeira estrofe, respondem pelo que se diz na segunda: “Saber o deserto/ e mais ainda: tê-lo. / Conquistar seus ferrões de areia / sua gula seca e oca tempestade. / (Penetrá-lo com suas íntimas chaves); ou em Noite, onde o protagonista é o mar depois da faina diária: “O mar / fareja e fareja / restos de sol sobre a areia./ O mar, / sextina negra, / sextina eterna e negra: / Galatéia”; ou o poema Dor, com a sua magistral nomeação de verme de arame, de grande intensidade: “Subindo pelas narinas / a dor, este verme de arame, / rasteja e pinga ovos / foscos / latejantes. /Seqüestra-me, a dor. / Sabe-me, a vadia”. Leia-se ainda o poema Darkness, com seus quatro últimos versos realizando uma verdadeira tour-de-force metafórica para a nomeação da desesperança e do medo: “O sono, / grande placa de cerâmica / e o tempo, / demônio a ranger sobre o infinito”.

Mas essa notável força de nomeação pode estar em poemas menos dramáticos ou, pelo menos, naqueles em que comparecem também momentos mais lúdicos. Leia-se Cena suburbana:
 

Os deuses dos olhos do gato
inquirem a alam da costureirinha
e lambem as mãos do triste:
e quão escuro é o poço
em que mergulham aquelas mãos,
sabem os deuses,
e por isso mesmo se aconchegam nelas.

A costureirinha, não,
não lhes dá intimidades
e enxota o gato
que com ardis de homem,
ondula macio entre as suas pernas.

 

Chega, entretanto, de retardamentos. Que o leitor passe a explorar por si mesmo toda a riqueza que está neste livro de estréia. Um livro que, como o leitor há de ver, passando pelos desafios da esterilidade daquela severa forma do vazio, que só se aprende com a experiência do deserto, constrói um belo e fértil pomar às avessas.
 

 

Micheliny Verunschk
Leia Micheliny Verunschk

 

 

 

 

08.11.2004