José Alcides Pinto
Natércia perdida na Península
Ibérica
Por Terras de Camões e Cervantes,
de Natércia Campos, ganha apreciação crítica do escritor José
Alcides Pinto. O resenhista destaca a importância poética e
histórica do livro, que apresenta ao leitor os cenários e as gentes
de Portugal e Espanha, herdeiros das culturas do Ocidente e do
Oriente.
Como pôde Natércia Campos colocar
toda a Península Ibérica dentro de um pequeno livro de apenas 66
páginas? Na verdade, não se trata aqui de um simples registro ou de
um caderno de anotações, mas de uma pequena obra-prima, resultado de
pesquisa in loco de sua viagem a Espanha e Portugal, empreendida
recentemente. E tem a considerar ainda o formato tão pequeno em
proporção para um livro tão grande em significado. E quem diria
quantos reinos através da história aqui se dispersaram e se juntaram
em disputas e contendas gloriosas?
Natércia viu de perto e colheu
todos os flagrantes, munida apenas de um bloco de papel e sua
esferográfica. Ela registrou, anotou e conferiu os momentos que seus
olhos observaram e dispôs sobre o papel em forma de missiva. A quem
seria destinado tão curioso e singular documento? Continua o
mistério...
O certo é que a ``carta'' é
resultado de uma amizade profunda cristalizada no templo de sua
alma. O título do livro: Por Terras de Camões e Cervantes
(Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 1998). Seja por isso ou
por aquilo, lembra o silêncio dos mortos e as saudades que eles nos
deixam a florescer. Portugal - berço de seus avós onde tem suas
raízes (e quem sabe) seu destino, já que por toda parte somos um
pedaço do chão que nos acolhe em seu âmago. Como bem diz Bilac: ``a
um só tempo berço e sepultura''.
Filha que é de um poeta e de um
dos nossos melhores ficcionistas - Moreira Campos - não faltaria a
Natércia engenho e arte para escrever essa narrativa histórica,
tantas vezes decantada por escritores e poetas famosos, a começar
por Camões e pelos cronistas da época.
Mas vamos ao que de perto nos
interessa. Aprendi muito nesse livrinho, não só o que sabia, mas
sobretudo o que jamais pensei saber. Não consigo esconder minha
ignorância do assunto e mais que esta a ponta de inveja que me ficou
a roer por dentro, por não ter sido o autor dessa carta-poética tão
maravilhosa.
Natércia percorre as terras de
além-mar com o encanto de uma fada e a ânsia absoluta de querer
saber mais do que a história pode dar. Levei para leitura em minha
fazenda o seu clássico Iluminuras, ganhador do Prêmio Bienal Nestlé
de Literatura Brasileira 1988, e Por Terras de Camões e Cervantes,
objeto deste trabalho.
Seus escritos me pareceram livros
de orações, dado o esplendor (iluminura) das palavras e o sopro
sacrossanto que deles se evolam. Tem muito de religião sua
narrativa, como não podia deixar de ser, em se tratando da história
de Portugal e Espanha, dois reinos em que a Fé e a Paixão foram
reconquistadas. Aqui lembro o episódio de Inês de Castro, a ``de
colo de garça e cabelos de fogo''. Diz Natércia: ``Procuro discernir
o desespero desse homem (refere-se a D. Pedro), ao saber da notícia
da morte trágica de sua amada, já que ele trazia no sangue o
trovador e sensível amante que fora seu avô D. Dinis''.
O cortejo descrito por Natércia é
uma página de ouro. O sincretismo religioso está presente a todo
instante: ``entre bentas luzes, o Rei embuçado de negro luto, os
sinos a dobrarem finados fazendo aumentar os lamentos e as orações a
Nossa Senhora do Pranto, me leva a imaginar a extrema tristeza de D.
Pedro, na última noite de velório ali em Alcobaça, quando pediu aos
monges para ficar com ela a sós. Há uma legenda de extrema dor
esculpida na base do sepulcro de D. Pedro - Até o fim do mundo -, a
nos revelar o poder lírico do amor''.
Ao escrever este livro, Natércia
evoca seus antepassados: ``avó Adélia, que escrevia versos, filha
bonita do português minhoto Thiago Moreira'', etc. O pai, professor
de literatura portuguesa por trinta anos na Universidade Federal do
Ceará, ensinou-lhe que, em Portugal, foram muitos os povos a plasmar
a formação da nacionalidade: ``o ibero, o celta, o fenício, o
romano, o godo, o sarraceno''. Que melhor aula de história
portuguesa poderíamos aprender em seu livro? D. Henrique, o primeiro
rei de Portugal, fundador da monarquia portuguesa. Reis, castelos,
mosteiros, heróis, santos, ascetas e as terras albarrãs... Tem mais:
``O vento suão, criador de palha e grão.''
Natércia nos fala de muitas
coisas. Vejamos pequena mostra de seu talento: ``A terra ocre a
perder de vista e, de repente, tudo é verde até o horizonte.'' Por
onde passa, vai dando nome aos bois. A ela devemos o poema que
transcrevemos, de Antônio Gedeão, um dos mais belos em língua
portuguesa:
Os meus olhos são uns olhos, E é
com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos onde outros, com
outros olhos, não vêem escolhos nenhuns.
Inútil seguir vizinhos, querer ser
depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos. Vê
gigantes? São gigantes.
Ficamos sabendo ainda que o túmulo
de Cristóvão Colombo está em Sevilha, na maior catedral gótica do
mundo, e que ``no Museu de Belas Artes de Sevilha está uma grandiosa
escultura do santo-homem, São Jerônimo, ajoelhado no deserto, com
uma pedra na mão (consciente de suas culpas e limites, batia no
peito com pedras). É ele meu santo, já que de 30 de setembro. Era um
homem extraordinário: polêmico, espiritual, filósofo, historiador,
gramático. Escritor de estilo puro em latim, grego e em hebraico. A
ele devemos a tradução em latim do Antigo e Novo Testamento que se
tornou, com o título de Vulgata, a bíblia do Cristianismo''.
Natércia em seu relato nos
transporta às épocas mais remotas da história até a modernidade, e
nos conta curiosidade como esta que não podemos deixar em branco:
``a de um certo Sultão Mouro que, depois de ter perdido seu reino,
rompeu em prantos, e que sua mãe disse com amargura: - Choras como
mulher o que não soubeste defender como homem''.
São muitos os santos e eremitas a
desfilar em Por Terras de Camões e Cervantes, como o solitário e
silencioso São Bruno, Santo Isidro, o lavrador, São Bernardo e
tantos e tantos outros. Mas a página mais pungente, certamente, é a
que se refere a D. Fernando: ``Recordo o triste destino do jovem D.
Fernando de Portugal, feito refém-prisioneiro pelos mouros.
Representava ele para os `Infiéis' o reino de Portugal, o invasor
que lhes tirava Ceuta. Sofreu torturas, sendo acorrentado e
martirizado em Tânger e Fez. Viveu carregado de ferros, todo ferido,
açoitado, até ser encerrado quinze meses em um escuro e imundo
cárcere, quase sempre ajoelhado, pedindo a Deus misericórdia''.
Natércia nos deu um livro
admirável, pôs diante de nossos olhos o sofrimento e a santidade de
almas eleitas, nascidas para mostrar ao mundo que o caminho do Reino
é muito difícil, mas não impossível. A fé dos cristãos perseguidos e
apartados dos seus é um relato atroz de padecimentos a que povos
cruéis impuseram aos cristãos. Conhecemos melhor em poucas linhas o
que não é dado saber em volumosos compêndios. E assim vemos triunfar
ao longo dos tempos as almas peregrinas daqueles que não trocaram o
amor de Deus por tesouro algum do mundo. E mais que isso puderam
suportar tanta atrocidade de cabeça erguida - matéria que o amor
divino transformou em fortalezas intransponíveis.
Leia Natércia Campos
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