José Alcides Pinto
Jorge Pieiro: o caos existencial
9.4.2000
Jorge Pieiro (Limoeiro do Norte,
1961) surge em nosso panorama literário sem alarde e sem aviso
prévio. Veio para ficar. Embora a timidez seja a marca predominante
desse jovem escritor, faz ele uma literatura diferente da de seus
contemporâneos, nova e rica sob todos os aspectos. Não traz
influência de terceiros, o que já alivia. Sua ficção e sua poesia
(poemas em prosa) são divididas e demarcadas como as fases da lua,
em pedaços, digamos melhor, fragmentos altamente significativos. As
partes valendo pelo todo guardam um sentido gestalteano.
Conheci-o arredio, visto de
passagem, como as matérias paridas de relance, feitio interior, que
não se dá jeito mesmo; os olhos arregalados engoliam os livros nas
prateleiras, sempre com um volume debaixo do braço. Nas noites de
autógrafos, espreitava as pessoas de longe, examinando-as como se
estivesse com medo de contaminar-se, atitude louvável, pois o vírus
literário é o mais difícil de ser curado.
É bom ser cauteloso com Jorge
Pieiro. Mas deixemos de rodeios e vamos ao que de perto nos
interessa. Pieiro é um poeta, um cronista, um contista, um
memorialista? Seja lá o que for, não interessa. O certo é que é uma
expressão literária à parte em nosso meio cultural. Sua produção nas
letras soma-se a cadernos de palavras. Poesia: Fragmentos de Panaplo
(1989), O tangedor (1991) e Neverness (1996). Na prosa de ficção
propriamente dita, se apresenta com Ofícios de desdita (l987) e Caos
portátil (1999). Voltou-se ainda Pieiro para o ensaísmo, Galeria de
murmúrios (1995).
Há uma originalidade muito
singular neste poeta. E é bom que se anote. Ele não parece
preocupado com o "peso" de seus escritos. São magros cadernos de
palavras, editados às suas expensas, o que nos remete a Dalton
Trevisan, grande escritor paranaense, que foi ignorado por algumas
décadas e inesperadamente descoberto por Fausto Cunha que o empurrou
para a Civilização Brasileira. Aí virou escritor, o que
evidentemente já o era. Faltava o batismo do público e o
reconhecimento da crítica. E é isso exatamente o que está faltando a
Jorge Pieiro. Alguém que se disponha, de mangas arregaçadas, a
ajudá-lo.
Bem, sem contar com alguns
trabalhos divulgados na imprensa, a obra literária de Jorge Pieiro
se resume no que acima foi dito, sem contar com o que continua
inédito no fundo das gavetas. Mas essa é outra estória.
Jorge Pieiro é um escritor
dilacerado que oscila entre o caos da vida e o abismo da morte.
Neste dois pólos extremos exercita sua criatividade. Sua prosa de
ficção se insurge com muita propriedade na vanguarda inventiva. Ele
abre espaços próprios inconfundíveis: ansiedade, delírios,
surrealidades, e até mesmo as grandes mentiras que tornam a história
da poesia verdadeira.
Ritmo, cores, som, luz estão por
dentro das palavras e sustentam o clima de alucinação de suas
estórias e se juntam às metáforas arrojadas em que ele próprio se
enreda, tal o fio de Ariadne. Nesse labirinto bem tecido, engenhoso,
a magia e o sortilégio andam de mãos dadas.
Jorge Pieiro faz da poesia o que
quer, sempre à procura do inusitado, joga as palavras com incrível
habilidade, num jogo metafórico e verbal que nos fascina. Os textos
de Caos portátil, seu melhor livro e/ou o mais significativo, foi
editado pela Letra & Música Comunicação, em 1999, com capa e
vinhetas (collages) do crítico e poeta Floriano Martins, o que
embeleza ainda mais o livro. Certamente, Floriano, ao lado de Sérgio
Lima, nosso surrealista maior, somando-se os dois a Pedro Henrique
Saraiva Leão, são escritores que acompanham sua trajetória
literária.
Nesta bibliografia apertada,
dilata-se a sensibilidade poética desse autor. A verdade é que Jorge
Pieiro, como ressalta o poeta PHSL, é um audacioso inventor de
palavras-signo, um verdadeiro criador de símbolos e mitos. Vejamos o
que Pieiro nos diz em
Odraga e o dragão
parágrafos definitivos para um contema secreto secreto
§ Aliandro Odraga tem olhos, cabelos, uma ponta de remorso no umbigo
esfacelado...§ Minha mártir-mãe não comenta com mais ninguém: o
líquido vermelho a molhar meus dedos são lágrimas de Aliandro Odraga...§
Construo cicatrizes na cara de Aliandro Odraga. Ele geme, eu engulo
o eco nos abismo da voz...§ Grito: o céu dos anjos cai, estorrica-se
na treva estalando tão alto o som de garranchos. E Aliandro Odraga
resseca em dor suas retinas...§ Surgem a ferrugem do tempo, o couro
do anjo e demônio, a abóbada de alumínio amassada pelas patas de um
gafanhoto com cabeça de fogo...
(Caos portátil, p. 13)
O certo é que não podemos resistir
à tentação de transcrever mais este texto da obra citada, já que
temos que fugir do assédio dos que se seguem:
"...Adonai, o criador de ilusões recriou o mundo. Tomou as pedras em
suas mãos, ergueu a vista para o horizonte e jogou-as para cima, em
chuva... Do mesmo modo, ao fim dessa dor, estalou garranchos, ergueu
novamente a vista para o céu visitante, deu-se por louco e declarou,
eis o escombros da fé! Alimentai essas idéias e oferecei-as em troca
de delírios..." (CP, p.23)
Jorge Pieiro é um poeta
virtualmente moderno. A plenitude de sua obra no tempo é só uma
questão de oportunidade. Os XXIII cantos que compõem seu Neverness
são de uma beleza invulgar, e por si só consagrariam qualquer autor.
Irmão siamês dos malditos
iluminados: Rimbaud, Baudelaire, Lautréamont, Poe e Artaud, sem
esquecer, naturalmente, Augusto dos Anjos, o que seria uma lacuna
imperdoável. E muitos outros poderiam figurar nessa coorte de
bravos, como Fernando Pessoa, por exemplo.
Caos portátil parece o livro de um
iniciado. Na sabedoria? E por que não? Já que é feito de idéias e
pensamentos que se amarram às experiências existenciais. Seus textos
questionam, preferencialmente, a razão de ser no mundo. Nesse
particular, ele se aproxima de Sartre e Camus. Seus trabalhos nos
levam a meditar sobre o destino do homem, com a condição humana e
sua dor.
Jorge Pieiro, com sua
pequena-grande obra, situa-se entre os melhores escritores
brasileiros de seu tempo.
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