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José Alcides Pinto




Barros Pinho: as teias da escritura


 

Barros Pinho, criador de um mundo onírico e fantástico, tanto na alegoria de sua poética quanto na ficção das histórias de seu primeiro livro de contos, esse extraordinário A viúva do vestido encarnado, título dos mais expressivos e singulares jamais visto em nossas letras e na literatura universal, ao lado do clássico O morro dos ventos uivantes, de Emile Brontë; Os servos da morte, de Adonias Filho; Não há estrelas no céu, de João Clímaco Bezerra, e o fabuloso ( e por que não?) Os verdes abutres da colina, desse modesto escriba, que ora vos visita nesta resenha. A viúva do vestido encarnado, ora lançado pela Editora Record, Rio-São Paulo, 2002, traz importante prefácio de Gerardo Mello Mourão, em edição primorosa, ao feitio daquela Editora e se insere com muita força na nova literatura latino-americana que vem de Alejo Carpentier, Jorge Luís Borges, Miguel Angel Asturias, Julio Cortaz, Vargas Llosa, e outros nomes heróicos.

Nessa linguagem criativa e de ruptura, percebe-se o jogo audacioso das metáforas que invadem o texto. Barros Pinho apresenta-se como o grande vencedor e inovador da narrativa coloquial, intérprete único e autêntico da saga dos costumes regionalistas de sua terra, o Piauí. Aqui estão por dentro do volume personagens estranhos, que nos remetem a um mundo primitivo e bárbaro, cuja identidade não conseguimos flagrar, de imediato, a não ser depois de minuciosa e atenta leitura, dado as expressões e riquezas das imagens poéticas-simbólicas de sua escrita. E por ser um poeta genuíno como Garcia Marquez de O outono do patriarca e Ninguém escreve ao coronel, Jorge Amado de Jubiabá, e Quincas berro d´água, seus contos nos fascinam em todas as passagens dramáticas dessa obra rara.

A viúva do vestido encarnado coloca Barros Pinho na linhagem dos escritores que fazem de fato literatura.Na estrutura da prosa romanesca, na ruptura de linguagem, na forma e na técnica da narrativa de costumes, Barros Pinho figura como mestre, enriquecendo a novelística brasileira, paralelamente aos seus autores mais representativos no gênero: Bernardo Elis, Samuel Rawet, João Antônio, Autran Dourado, Murilo Rubião, José J. Veiga, Osman Lins, Juarez Barroso e João Ulbaldo Ribeiro. Poucos ficaram fora da lista.

Aqui se encontram, em verdade, os representantes máximos de nossa ficção, alguns já consagrados como mestre Moreira Campos, José Cândido de Carvalho, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos e Clarice Linspector.

A viúva do vestido encarnado, porém, destaca-se entre os demais, pela caracterização dos personagens, pela linguagem vigorosa de seus contos, na leveza de estilo e na densa atmosfera de sua poesia, que lembra, por vezes, Willian Faulkner em O santuário, John Seteinbeck, de As vinhas da ira.

James Baldwins, o famoso negro norte americano, da geração nobre de Ernest Hemingway, Erskine Caldwel, Miguel Angelo Asturies, Jean Genet, cuja vertente vem dos autores malditos, que Barros Pinho talvez não tenha lido por completo, mas que destes se aproxima pela identidade e confluência com suas obras, o que acontece com outros escritores como é o caso de Jean-Artur Rimbaud e Baudelaire, Augusto dos Anjos e Cruz e Souza, Álvares de Azevedo e Lamartine, por exemplo.

O emprego adequado da palavra se pressente, no sentido da frase, freando a eloqüência discursiva e impondo à essencialidade do texto uma ordem sensível e flexível na plástica das imagens.

A viúva do vestido encarnado torna-se o livro ideal no panorama da moderna ficção brasileira de nosso tempo. Seus personagens se apresentam com naturalidade, tornando a narrativa mais visual e acessível ao leitor, mesmo nos conflitos de seus lances mais dramáticos.

Logo em ´Araçás do Mestre Rosa´, o conto que abre o livro, encontramos a marca inconfundível do autor na autenticidade da narrativa: Ora, bem dizer o homem ainda no terreiro, entrando em casa com o tinir dos arreios da burra Faísca e dona Amália vem se chegando no meu rumo direitinho cobra quando perde o veneno. Num aconchego sem demora, faz a gente trabalhar o corpo dela, com risco de morte a amargar o gosto do prazer. Nunca dei crença a mandingas de caboclo rezador, mas sei das arapucas que satanás pode arranjar. Vim aqui para empleita de serviço sagrado da capela. Agora me vejo no meio do eito, a rastejar pecado.

A paisagem geográfica vai se delineando como na montagem de um filme, e as histórias vão se distribuindo paralelas à crescente e ansiosa curiosidade do leitor, que já se inquieta antecipando o desenrolar da trama.

O enredo vai se costurando num todo uniforme e crescente na tarde mansa, macia, nas águas fluviais do Parnaíba, gemendo, como um ´velho monge, as barbas brancas alongando´, no ar parado do tempo, nas lembranças do passado carregado de fantasmas e de sombras que nos asfixiam. O Parnaíba rola sob as balsas carregadas que se entumecem e fumegam ao calor do meio-dia, dando à obra um sentido plural e substantivo. Em torno a tudo isso lemos em ´ Mundica, Mulata do Cais´: ´Na casa-grande a menina cheirando a moça,de flor no cabelo. Carrega no ventre o cio da terra viçosa´.Os títulos dos contos são longos como a cauda dos mamíferos se espreguiçando nas docas, cachos maduros refletindo-se na correnteza, onde às margens do rio vivem criaturas pobres com seus tormentos. Seus contos às vezes, são nostálgicos e violentos, misto de dor e tristeza, misturados às tragédias amorosas e aos crimes.O livro não tem divisão, é um todo contínuo e uniforme, a desdobrar-se em figurações de um mundo de visagens e de crendices, perseguindo um destino de paixão e sofrimento. Assim as histórias vão num crescente ondulante, mágico, misterioso, até por fim aportar no conto que dá título ao livro e fecha o volume, narrativa de grande fôlego: densa, terrível, abissal, cercada de amor e ódio.

A unidade do livro está em cada história e no todo, já que não é possível separar uma coisa de outra.

Linguagem, conteúdo, forma, ícone, estrutura, técnica de composição e montagem seguem a mesma linha emblemática e simbólica que caracteriza o sentido da obra e se enriquece na transcendência do realismo mágico.

A viúva do vestido encarnado foi o livro mais regional e mais universal que já li. Em síntese: é uma obra que vai de encontro à posteridade, antes mesmo que esta se aproxima.
 



Barros Pinho
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