Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

José de Alencar


 

Iracema: múltiplos discursos
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil


 

O romance Iracema é, antes de tudo, uma das primeiras manifestações da prosa poética na literatura brasileira. Em sua escritura, incrustam-se dois gêneros: o épico - por ser uma narrativa - e o lírico -, uma vez que abriga subjetividade, volições - o que faz com que sua linguagem toque, freqüentemente, o poético. Ressaltem-se, ainda, outros elementos, tais como: o ritmo, a musicalidade, a cadência. A musicalidade é a característica mais marcante de seu discurso literário: ideal romântico por excelência, José de Alencar cultiva ritmos poéticos e metáforas polivalentes.

´Iracema - a lenda do Ceará´ - compreende 33 capítulos. Se em ´O Guarani´, há o encontro de um índio - Peri - com a civilização branca e portuguesa - Ceci -, em ´Iracema´, consoante observou Massaud Moisés, (História da Literatura Brasileira - Romantismo - Cultrix, 1984) ´arquiteta-se a equação dramática oposta: um europeu, Martim Soares Moreno, descobre nossa vida primitiva por meio da heroína que confere nome ao romance.´ Observa o ensaísta que sendo Iracema uma índia é, sobretudo, um ser mítico, pois ´o indígena alencarino é pleno de qualidades, em flagrante contraste com os brancos, não raro primários e viciosos´.

Assim, numa atmosfera lendária, exótica, os protagonistas viverão a lírica e trágica história de seus amores: o encontro da Europa com a América primitiva, a produzir o primeiro cearense - Moacyr - o filho do sofrimento.

Seguem-se fragmentos do cordel ´Romance de Iracema - a virgem dos lábios de mel´, cujos versos são atribuídos, com mais freqüência, a Alfredo Pessoa de Lima, embora haja quem os reconheça com sendo da lavra de João Martins de Athayde.

Em mil seiscentos e seis
Partiu uma exposição
Seu chefe, um fidalgo luso,
Entrando pelo sertão
Viera da Paraíba
Bem perto de Muritiba
Fundou uma povoação.

Martim Soares Moreno
Tomou parte na viagem
Era um moço português
Homem de muita coragem
Logo que chegou ali
Fez-se amigo de Poty
O grande chefe selvagem.

Um dia, numa caçada,
Que fez pra se divertir
Martim perdeu-se no mato
Antes de se prevenir
Não acertou o caminho
Ficou no mato sozinho
Sem ter por onde sair.

Viajou o dia todo
Foi parar numa lagoa
Tratou de matar a sede
Com água que era boa
Depois, muito fatigado,
Deixou-se ficar deitado
Mesmo ali, na relva, à toa.

De repente viu, Martim,
Sair de dentro do mato
Uma índia muito bela
Mas sem roupa e nem recato
Trazia o arco da guerra
O seu pé tocava a terra
Tão leve como o do gato.
Saíra há pouco do banho
Pois o seu corpo molhado
Mostrava logo que o vento
Inda não tinha secado
Rosto redondo e bem feito
O lindo corpo perfeito
O olhar vivo, espantado.

O corpo roliço e belo
A face linda e fagueira
Cor da asa da graúna
Era aquela cabeleira
Que aos seus ombros cobria
Igual a relva macia
Era a sua pele trigueira.

Ao ver aquela figura
De admirável beleza
Estátua de bronze vivo
Feita pela natureza
Martim até se assustou
Dum pulo se levantou
Sem conter sua surpresa.

Porém mal ergueu o corpo
Quando uma flecha partiu
Do arco da índia nua
E em pleno rosto o feriu
Martim pensou em vingar
Quis a espada puxar
Mas do lugar não saiu.

Embora fosse selvagem
Era uma mulher que via
Ele aprendera em criança
Quando sua mão lhe dizia
Que a mulher ruim ou honesta
Na cidade ou na floresta
Se trata com cortesia.

Quando a índia viu Martim
Botar a mão na espada
E depois ficar olhando
Pra ela sem dizer nada
Demonstrou-se arrependida
Desconfiada e sentida
Olhava a face magoada.

Depois olhando com pena
Para o rosto do estrangeiro
Fez depressa um curativo
O sangue estancou ligeiro
Depois a flecha apanhou
E nos joelhos quebrou
Falando assim ao guerreiro:

- De onde vens, homem estranho,
Que aqui no sertão vagueias?
Tens os olhos cor das águas
E a face cor das areias
Em que distante sertão
Mora o povo teu irmão
Estás perdido ou passeias?

Martim falou para a índia
Na língua que ela falou:
- Venho de terras distantes
Que teu povo nunca andou
Fica distante essa terra
Muito além daquela serra
Que teu pé nunca pisou.

- Agora, virgem das selvas,
Quebraste a flecha da paz,
É sinal de amizade
Que a terra estranha me faz
Sou seu hóspede e amigo
Peço pousado e abrigo
Na cabana de teus pais.

- Bem vindo sejas, guerreiro,
Respondeu-lhe a virgem então,
O estrangeiro é sagrado
Nas terras dessa nação
Foi Tupã que te ensinou
Pois tua boca falou
A língua do meu sertão.

- Na cabana de Arakén
Pajé da tribo e pai meu
Serás hóspede e amigo,
Meu povo te recebeu
Eu sou a virgem Iracema
Que o segredo da jurema
Distribui ao povo seu.

Martim foi seguindo a índia
Através do bosque imenso
A campina se cobria
Dum verde vivo e extenso
Do corpo lindo trigueiro
Vinha ao nariz do guerreiro
Um cheiro morno de incenso.

Chegaram na grande aldeia
Todos ficaram de pé
Vendo Iracema passar
Pra cabana do Pajé
Com o homem que usava espada
Que tinha a pele corada
Cor do fruto do café.

O pai da índia, Arakén,
Velho, mas inda ligeiro
Ao ver Martim, levantou-se,
Dizendo: - Venha, guerreiro,
Como hóspede e amigo,
Aqui fumará comigo
O cachimbo hospitaleiro.

Era costume dos índios
Quando faziam amizade
Fumarem num só cachimbo
Pra mostrar fidelidade
Tanto ele como Martim
Depois tomaram cauim
Palestrando com vontade.

Martim explicou ao velho
Como se perdera ali
Arakén disse: - Guerreiro,
Vais ficar conosco, aqui,
Até que eu veja chegar
Meu filho que foi caçar
E que se chama Caubi.

- Ele conhece as florestas
Pode andar de olhos fechados
Os teus irmãos devem estar
Tristonhos e angustiados
Quando meu filho voltar
Ele pode te guiar
Podes ficar descansado.

Veio a ceia, e o português
Que estava necessitado
Comeu com muito apetite
Uma perna de veado
Bebendo muito cauim
Foi um verdadeiro festim
Que lhe haviam ofertado.

Depois armaram uma rede
Martim deitou-se e dormiu
No outro dia acordou cedo
Com o alvoroço que ouviu
Iracema lhe explicou
Foi meu irmão que chegou
Ele ainda não te viu.

Bem na frente da cabana
Cresceu aquele alvoroço
Com a chegada de Caubi
Um guerreiro forte e moço
Que tinha o corpo vergado
Com o peso dum veado
Que trazia no pescoço.

Junto dele também vinha
Um guerreiro corpulento
O rosto duro e sisudo
O passo seguro e lento
Era o chefe Irapuan
Tinha os olhos de acauã
Era veloz como o vento.

Seu arco era em combate
Igual a foice da morte
Na tribo dos tabajaras
Era o guerreiro mais forte
Quando sua voz se alteava
O povo todo escutava
Fitando seu alto porte.

Viu o estrangeiro na taba
Arakén o apresentou
Irapuan desconfiado
De olhar fechado o olhou
Caubi porém chegou perto
Com riso franco e aberto
E ao estrangeiro saudou.

Iracema era na tribo
Uma virgem consagrada
Era ela quem fazia
A bebida que era usada
Quando a tribo estava em festa
Mas a virgem da floresta
Era muito respeitada.

Irapuan não falava
Porque mesmo não podia
Mas em segredo ele amava
A virgem que não sabia
Dessa paixão do guerreiro
O seu afeto primeiro
Talvez nasceu nesse dia.

De fato quando ela viu
Martim na rede deitado
O peito forte e robusto
O rosto branco e corado
Seu sangue virgem de amor
Circulou com mais ardor
No coração apressado.


 

 

 

 

 

23.01.2006