Jorge Amado
Amizade de toda a vida
in A Tarde
24/04/99
Não sei, não recordo quando e onde
conheci Dorival Caymmi pela primeira vez e pela primeira vez rimos
juntos nossa alegria. Foi, com certeza, na Bahia, antes da partida
do clássico ita, levando-nos – ao aprendiz de compositor e ao
aprendiz de escritor – para tentar exercer nossos ofícios no Rio.
Naquele tempo, quem quisesse um lugar ao sol tinha de começar pelo
sacrifício de sair de sua terra, a terra da Bahia, onde éramos
livres adolescentes nos mercados e nas praias. Só no Rio havia
ambiente e oportunidade.
Na praia de
Itapuã, nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga
cresceu o menino Dorival, filho de Seu Durval, modesto funcionário
estadual, bom de violão e no trago. Cresceu assim o moço Caymmi, na
pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos
terreiros de santo, vivendo cada instante de sua cidade e de sua
gente, alimentando-se de sua realidade e de seu mistério,
preparando-se para ser seu poeta e seu cantor. Livre coração e o
desejo de criar. A música popular brasileira não era ainda assunto
de gazetas, revistas e festivais. O moço baiano, no entanto, não
desejava nem o título de doutor nem o emprego público prometido,
queria tão-somente compor e cantar. Teve de partir para ganhar a
vida difícil.
Naqueles idos de
1936 o mundo era nosso nas ruas do Rio de Janeiro, lá se vão mais de
30 anos. Uma canção que fizemos juntos naquela época, É doce morrer
no mar, tirada de uma cena de Mar Morto, continua popular até hoje e
pode-se mesmo dizer: cada vez mais. Aliás, eis uma das
características fundamentais da música de Caymmi: sua permanência,
sua constante atualidade.
Sendo seu tema a
Bahia, sua vida, seu povo, seu drama, sua luta, seu mistério, sua
poesia, seus amores, a morena de Itapuã e as rosas de abril, Iemanjá
e o vento do oceano, a jangada e o saveiro, o mundo da Bahia, não há
uma frase sua, uma única, de música ou poesia, que seja
circunstancial, que derive da moda, de uma influência momentânea.
Não compôs
demais, ao sabor do sucesso e da novidade. Cada música sua é
inspiração verdadeira e experiência vivida, é seu sangue e sua
carne, é sua verdade. Uma será mais bela, outra mais profunda,
aquela mais fácil, mas nenhuma resulta da busca do sucesso ou do
aproveitamento de qualquer circunstância.
Caymmi leva
meses e meses trabalhando cada uma de suas músicas e letras, ao
sabor do tempo e da preguiça baiana e criadora. Segundo dizia Sérgio
Porto, a música de Caymmi muito deve a essa preguiça, ou melhor: a
esse tempo de lazer de medida tão larga, esse tempo baiano. De tudo
isso posso dar testemunho, pois nesses 30 e tantos anos eu o vi
compor sem descanso, mas sem pressa, vi também nascer e crescer a
maioria de suas composições mais famosas. Em minha casa – em várias
das casas onde vivi – ele trabalhou e criou. Jamais espicaçado por
compromisso ou intenção imediatista.
Para Caymmi a
moda não existe. Eu posso dizer, posso testemunhar como ninguém.
Juntos andamos um bom bocado de caminho, juntos criamos alguma
coisa, juntos começamos a envelhecer. Juntos fizemos teatro, cinema,
tratamos o livro e a partitura, tocamos a vida e o amor. Amizade de
toda a vida, “meu irmão, meu irmãozinho”.
O escritor Jorge Amado publicou este texto, com o
título O poeta e o mar, na coleção Nova História da Música Popular
Brasileira (Abril Cultural, 1970).
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