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J. Romero Antonialli


O despertar de uma nova estética
 

O meu amigo poeta, em conversa comigo, me falou sobre a busca que fazia de uma nova forma de expressão mais condizente com certos estados d'alma, com certas necessidades de dizer, nessa busca incansável que tem o artista de se assintotar sempre e sempre em demanda do ainda indizível. Sabemos bem que a poesia, muito mais do que a filosofia, tem esse caráter sagrado de investigar, em assombro e em êxtase, as mesmas entrâncias e reentrâncias recônditas do ser. Falava-me ele, pois, sobre a pesquisa que ora fazia na tessitura de seus singulares e maravilhosos poemas. Dizia-me Laerte que se tratava provavelmente de um novo tipo de metáfora, urdido com base em substâncias que ainda não tinham sido conscientemente cogitadas para esse fim.

Era uma metáfora especial, asseverava-me, que estava, que estaria, casada com as novas necessidades que emergiam nesse momento privilegiado, dramático e crítico do nosso jornadear cósmico em que Aquário assoma, exibindo já um pouquinho do seu tremendo poder de arrastar a consciência para novas manifestações de si mesma. Era um modo de dizer que talvez não pudesse ter sido antes inventado ou descoberto: faltava ao homem essa possibilidade nova que surge de navegar, não mais nos puros e conturbados mares da emoção, dos sentimentos, das grandes e pequenas comoções humanas. Era, tinha de ser, um jeito novo de ver a realidade de uma maneira mais verdadeira, para além do paradigma cartesiano a que todos os humanos, de uma maneira ou de outra, em graus variados, estavam condicionados, pagando-lhe, às vezes, escorchantes tributos. Para ser sentido, para poder ser sentido, esse modo de ver-dizer o ser, tinha de ser gestado em um novo caldo-berço consciencial, em que o contingente usual ganhasse uma nova expressão, em que o mesmo cotidiano e cotidianismo fosse bafejado por novos ares mais sutis, mais plásticos, mais incondicionados, mais significativos em si mesmos. Seria essa assim-metáfora um instrumento cognitivo-estético que permitiria ao homem um descortino mais vívido e vero do fascinante e eternamente indecifrável mistério do ser. Era apenas um passo nesse caminhar belo e santo, mas seria ele, depois de entendido, depois de (ainda que pobremente) assimilado, um avanço notável no caminho sempre novo, sempre mais novo, da expressão artística.

Não foram essas as palavras que Laerte Antônio usou, mas foi esse o teor do que disse, enlevado pelos coruscares daquele universo (este universo!) em que costuma se embrenhar, maravilhado, para poder maravilhar.

Fiquei alguns momentos a tentar digerir o que me dizia, e confesso que pouco consegui entender, em termos reais, de uma maneira claramente equacionada, de tudo aquilo que entrava em minha alma, em meu coração, com a força lhe-inerente daquele verbo forte, estranho e irretorquível. Uma parte de mim que não estava (que não é) muito afeita a esse humano hábito de ter de equacionar para poder mais plenamente entender, sentia-entendia o alcance e a maravilha do que o meu amigo me dizia. Era uma sensação de plenitude aliada a um vazio em que via submersa a minha razão, falta do ar novo que não conseguia ainda respirar.

Pedi-lhe o obséquio do exemplo, e o que ouvi, ouvi em maravilha, em quase êxtase:

"O sol relincha no horizonte..."
 

Assim: dessa maneira descontextualizada, que não me permitia abranger o painel mais amplo em que esse verbo magnífico se inseria... Mas eu tinha uma chave, que meu amigo me fornecera, naquele seu prévio discurso trans-lúcido: eu tinha de olhar para esse dizer com novos ouvidos, com novos olhos, que pudessem captar o além-metáfora. Poderia até partir do metafórico, mas não poderia ali ficar, teria de transcendê-lo: o metafórico seria um excelente ponto-de-partida, um amesquinhador ponto-de-chegada. Então, procurei, em nível de reelaboração provisória consciente, tentar equacionar ou semi-equacionar o que estava ouvindo, o que me mostravam os olhos dos meus olhos de tentar devassar o impenetrável... E vi, vislumbrei, o sentido e a novestrutura daquele verbo assim derramado, parcamente, fartamente, em respingos de luz. Havia ali sim, uma metáfora básica, que, por assim dizer, ali subjazia determinante de todo o processo. Era mais que uma metáfora: não se tratava apenas de uma translação de sentido, correspondente a um símile puro e simples: o sol ali referido não era apenas como se fosse um cavalo. Era isso também, mas era algo mais. E isso tinha a ver com uma espécie de metonimização da metáfora ou com uma espécie de metaforização da metonímia. Esse equacionamento ainda vago já permitia um maior entendimento da expressão acima referida. Não era apenas uma maneira translata de figurar o sol: era uma maneira de dizer que o sol, naquele momento, funcionava como uma espécie de refletor da realidade que iluminava. Era como se ele, ao iluminar o objeto, o espelhasse em seu mesmo ser, produzindo do objeto uma espécie de imagem ressonante que ele, o sol, incorporava, por assim dizer, em sua mesma substância infinitamente plástica. Assim, o verso acima deve ser, sim, entendido como uma translação de sentido baseada, não apenas na identificação (e aqui teríamos uma metáfora convencional), mas também e principalmente na contigüidade (que é própria da metonímia). E isso é, tão-somente, um quebradiço começo, mas agora, temos já uma chave (ainda canhestra, é verdade) para tentar entender aquela expressão, para além do meramente metafórico, para além do meramente metonímico. O sol, naquele dado instante, ao iluminar uma cena campesina em que sobressaíam alguns animais domésticos e outros, privilegia o belo cavalo que relincha sua estuância e seu vigor, e com ele se identifica, passando a incorporar, em sua substância, a imagem daquele ser que naquele momento se impunha, magnífico, sobre tudo e sobre todos. Mas há nisso tudo uma contraparte que se deriva de um quadro holográfico maior: o cavalo, também, por sua parte, incorpora em si mesmo influxos que lhe advêm do todo e do sol: o seu relincho é como um facho de luz sonoro que "retine no infinito"...

Esse é um processo que parece transcender os limites do tridimensionalismo, já que invade esse mais além que parece confluir com outras dimensões em que se localizam os infinitos degraus do ainda inefável.

O universo mecanicamente concebido, o pensamento cartesianamente articulado, a emoção verossimilmente concebida dentro de paradigmas tendentemente positivistas, tudo isso tem de ceder o passo para as novas tendências que já se vislumbram a partir das intrigantes conquistas da física quântica, que estão começando a impor um novo paradigma em que ganham cada vez mais consistência o paradoxo, o dialético, o transdialético, o possibilismo... E isso em todas as áreas do humano conhecimento, do conhecer, do afã de conhecer, de conhecer-se...

Difícil coisa é recortar o que ainda está em gestação, para dela ter contornos mais nítidos, mas o que se pode afirmar é que essa nova estética, representando um ponto de ruptura no fluxo do elaborar-sentir-mentar artístico havido como tradicional, tem muito mais a ver com o conceito de ressonância, do que com o conceito de identificação. Mas sentimos que é algo mais ainda: tem a ver também com o conceito de interseccionismo, descoberto-inventado-elaborado por Pessoa, já que se baseia numa nova Weltanschauung, que, sem deixar de considerar a coisa como a coisa que ela é, ou como se apresenta diante da consciência, tem dela uma representação mais rica que vê nela aquilo que ela poderia ser (e passa a ser para todos os efeitos noético-estéticos), em sua rede de manifestação holograficamente considerada. Às apalpadelas caminhamos, nessa lide ingrata e altamente gratificante de tentar explorar com esta luz bruxuleante e tênue mais esse desvão da Caverna, em que ora passamos a ingressar mais uma vez novimaravilhados e inseguros...

Para tentar resumir, diríamos que esse novo modo de dizer se insere em uma estese que tem muito a ver com:

  • metaforismo, pelo translato na identificação de sentidos;

  • metonismo, pela sua sua absorção de significados por contigüidade;

  • interseccionismo, pela intermixação de planos n-expressionais próprios da sensitividade de todo ser;

  • holografismo, pelo fato de todo ser ser considerado como sendo, em algum nível de sua seidade, como sendo simultaneamente todos os outros seres, podendo por isso, como que refletir todos os demais, em sua mesma substância, que como se alotransubstancia sem se perder a si mesmo;

  • relativismo, que nos mostra que o ser, além de ser aquilo que ele é em si mesmo, também o é em relação: aquilo que é macrocosmo em relação a um microcosmo é microcosmo em relação a um macrocosmo de "graduação" maior. O elétron é diante das ditas partículas (?) menores que o formam (?) um macrocosmo, mas é microcosmo em face do universo em que ora existimos, e esse universo nada mais é que um microcosmo diante de outras mais abrangentes (?) manifestações do Ser...

  • quantismo, não só por apresentar do tempo uma concepção nova, mais plástica e mais dinâmica em que suas tradicionais categorizações se esfumam num caldo prístino de encontradas e desencontradas identificações numa quase-imagem de a-tempo; como também pela incerteza que passa a se incorporar na expressão do objeto artístico, que, dando um passo para além do multissignificativo, passa a ter como caráter próprio essa incerteza que ganha paradoxalmene o cunho de certeza, já que sem a incerteza, o ser perderia uma dimensão altamente significativa de si mesmo... E o princípio da incerteza valeria para este macrocosmo em que ora existimos? E não seria este macrocosmo uma dimensão do Ser que (diante de outros níveis mais transcendentemente macrocósmicos) aquilo que conseguimos ver para além do elétron e ainda mais além, ainda mais infém?

  • possibilismo, conseqüência direta do quantismo, que considera que o ser é não só aquilo que está mostrando ser, mas principalmente aquilo que ele poderia ser, ou até mesmo aquilo que ele não poderia ser... E isso, não numa perspectiva de futuridade ou de mera hipótese, mas em termos reais, presenciais, transpresenciais...

  • e algo mais que nosso pobre poder de equacionamento, ainda tinto do condicionamento a que foi longamente submetido, ainda não pode atingir...

 

E a poesia genuína, que sempre está muito à frente do seu tempo, não poderia deixar de refletir, de uma maneira vívida, aquilo que ainda não existe, aquilo que de alguma maneira já existe, parcialmente accessível, em outras dimensões ainda não desveladas do Ser.

E o novo, o insolitamente novo, tem de buscar novas formas de expressão, novas formas de dizer, novas inflexões do Verbo. E esse algo novo tem de ser essencialmente novo: não pode ser um rearranjo do velho, não pode ser uma mera mistura ou salada de procedimentos antigos reiteradamente trilhados.

Assim, todo o equacionamento que venhamos a fazer não passará jamais de um mero reflexo atenuado de uma realidade que, se situando para além do atualmente entendível, está a aguardar o caminhar da consciência em um maior desvelar de suas potencialidades.

Mas é bom e desejável que estejamos preparados para as novas coisas que hão de vir, e cada vez mais definidas, com esse poderoso influxo de Aquário, que está, estuante, a nos saudar...
 

 

 

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Cláudio Feldman