Júlio Castañon Guimarães
A lógica particular do poeta
13.09.2003
Afonso Ávila discute as relações
entre a
história e os percursos individuais
Júlio Castañon Guimarães
Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa
A lógica do
erro
Affonso Ávila
Perspectiva, 206 páginas
R$ 26
Afonso Ávila, um dos
mais importantes poetas contemporâneos brasileiros, ao longo de sua
produção intelectual vem desenvolvendo também atividades como
pesquisador e como crítico. É autor, por exemplo, da coletânea de
ensaios O lúdico e as projeções do mundo barroco. Além disso,
tem-se dedicado de forma constante, duradoura e profícua a permitir
a circulação de trabalhos de numerosos pesquisadores, propiciando a
produção de muitos desses trabalhos.
Isto vem se dando, há
mais de 30 anos, com a publicação da revista Barroco - por
ele criada e dirigida -, cujos números têm surgido com a relativa
regularidade permitida pelas dificuldades a serem transpostas em
empreendimentos desse tipo. São volumes alentados, que reúnem
trabalhos de importantes pesquisadores de várias áreas que se
dedicam ao estudo do barroco. A lembrança desses dados não tem o
intuito apenas de oferecer informações sobre o autor, mas também de
salientar como o objeto dessas suas atividades não está distante de
sua poesia.
Pode-se ainda lembrar a
ligação de Affonso Ávila com os movimentos da poesia brasileira a
partir dos anos 50. Nesse sentido, teve participação fundamental num
acontecimento como a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda,
ocorrida em 1963 em Belo Horizonte, que assinalou um momento
importante das vanguardas brasileiras surgidas na década de 50.
Assinalou em especial a aproximação entre o concretismo paulista e o
grupo mineiro reunido em torno da revista Tendência (da qual
Affonso Ávila era integrante) - o número 4 da revista apresentava um
dossiê intitulado justamente ''Diálogo Tendência-Concretismo''.
Essa aproximação
ressaltava exatamente um dado que até hoje - ou por prejulgamento ou
por lamentável desconhecimento - é apontado em sentido inverso, ou
seja, como se houvesse por parte de um setor dos poetas ligados a
essas vanguardas um afastamento da realidade em benefício de
explorações formais (a propósito disso se publicou, por exemplo, no
número já referido de Tendência, o texto de Haroldo de Campos
''A poesia concreta e a realidade nacional'').
Todos esses dados
ligados ao trabalho de Afonso Ávila permitem detectar alguns
elementos de destaque em sua poesia, pois se trata de uma obra em
que convivem a temática social e política, a pesquisa histórica, a
experimentação e a invenção poética. Assim, a história, por via do
interesse especial do poeta pelo barroco, constitui matéria básica
de um livro como Cantaria barroca (1975). Ainda em
Barrocolagens (1981) encontram-se textos mais longos e
aparentemente mais discursivos, mas na verdade altamente
fragmentados, pois resultam, como indica o título, da colagem de
trechos de textos de vários autores, substancialmente relacionados
com a história do Brasil. Já Código de Minas (1969), um dos
grandes livros da poesia contemporânea brasileira, realizou uma
excepcional aliança entre uma perspectiva político-social e uma
elaboração construtiva.
Mas a poesia de Afonso
Ávila apresenta ainda outras linhas de atuação, como nas
condensações lírico-irônicas de O visto e o imaginado (1990)
ou naquelas talvez especialmente mordazes do Delírio dos cinqüent'anos
(1984), em que são eliminadas quaisquer possibilidades de memória
autocomplacente. No livro O belo e o velho (1987), que se
poderia contrapor aos outros pelo aspecto mais discursivo do texto,
destaca-se justamente uma organização de fato antidiscursiva, por
meio de uma disposição gráfica que cria pontos de desarticulação
para o fluxo do texto.
Em seu livro mais
recente, A lógica do erro, são retomados vários dos pontos
fortes que se encontram ao longo da obra de Afonso Ávila. No
entanto, este é um livro excepcionalmente novo (se é que esta
expressão seja apropriada para um livro cujo vigor surge da
elaboração de uma violência com raízes profundíssimas). Na
apresentação do volume, Jacó Guinsburg conseguiu com felicidade
sumariar os aspectos centrais do livro, não sem estabelecer uma
distinção entre aqueles que vieram marcando a obra do poeta e
aqueles que constituem o traço novo deste volume. Talvez a grande
distinção esteja em que a dimensão da memória, da auto-reflexão, da
subjetividade, ''não flui mais como um ego definido, mas como um
self-universo''. Assim, a individualidade que seria matéria dos
poemas não ocorre de modo isolado; ela na verdade abarca o próprio
contexto em que se situa. E esse contexto consiste no tempo em que
essa individualidade está presente, sendo que nesse universo a
dimensão cultural ocupa posição especial.
Desse modo, uma
constante na obra poética de Afonso Ávila permanece de modo vigoroso
neste novo livro - a inter-relação entre memória individual e
história. E mais uma vez aqui cabe a observação de que se trata de
uma memória sem autocomplacência, que se desenvolve nos poemas
(sobretudo na segunda parte do livro) numa corrosiva exposição do
enfrentamento entre os fragmentos de um percurso existencial (o que
antes de tudo já é indicado extra-textualmente pela identificação de
uma foto do autor no livro: ''O poeta chegando aos 70'') e os
pequenos e grandes desastres do mundo.
No conjunto, os poemas
desenvolvem uma reflexão sobre temas como a criação poética ou a
passagem do tempo, temas certamente elevados, mas, por outro lado,
essa reflexão se faz carregada de ''ironia hílare'', para usar
expressão de Haroldo de Campos. Esses temas elevados não se
desenvolvem exatamente enquanto tais, mas a partir da sucessão de
elementos mais rasteiros, mais quotidianos. Se de um lado são a
ironia e o humor ácido que de certa forma abrem as picadas críticas
dessa poesia, de outro lado isto se faz em associação fundamental
com alguns elementos próprios da constituição do poema. Um deles é a
conformação do verso, que em sua extensão tende a pôr em questão a
própria condição de verso, para o que ainda contribui a situação
sintática, em que os nexos não se mantêm com regularidade, mas se
rompem com freqüência, desorientando a possibilidade de uma leitura
pacífica. O ritmo que assim se estabelece, com toda sua aspereza e
imprevisibilidade, talvez seja o índice mais palpável dos desafios a
que esta poesia se propõe.
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