José Inácio Vieira de Melo
Sentença de uma vida
20/09/2003
O escritor baiano
Aleilton Fonseca, 44 anos, autor de sete livros, lança agora, O
canto de Alvorada, seu terceiro livro de contos, que foi vencedor do
Prêmio Nacional Herberto Sales, da Academia de Letras da Bahia com
patrocínio da Brasken. Editado pela tradicional José Olympio, o
livro chega ao público com o aval do prêmio e a atenção da crítica,
para talvez confirmar o autor entre os novos nomes do conto
brasileiro. O lançamento vai acontecer na próxima quarta-feira, dia
24, a partir das 17 horas, na Academia de Letras da Bahia.
Nesta entrevista,
Fonseca faz um périplo por diversos temas ligados à produção
literária e à sua própria relação com a escrita, inclusive faz uma
recomendação aos que se iniciam na criação literária. “Não há
literatura sem vivência e reflexão. Em segundo lugar, ler muito e
mais um pouco, sobretudo vivenciar e fruir a arte em geral. A
bagagem da vida é a matéria-prima que o autor transforma em sua
arte, não pela simples confissão, mas pela transubstanciação. Criar
é antes de tudo aprender”, adverte. Adiante, os principais trechos
de sua entrevista.
José Inácio Vieira de Melo
José Inácio
Vieira de Melo - Por que você prefere escrever dentro da tradição ao
invés de experimentar novos caminhos?
Aleilton Fonseca - Literatura é inovação e renovação. Desde a década
de 80, o conto brasileiro enveredou e, em muitos casos se perdeu,
pelos caminhos da experimentação. Quando muitos experimentam a
qualquer preço, é preciso que alguns sigam a lição dos clássicos.
Italo Calvino já mostrou o quanto é necessário e imprescindível
mantermos um diálogo com a tradição, numa perspectiva não
conservadora, mas em busca de uma renovação constante que realimente
a escrita e mantenha o interesse dos leitores.
JIVM - Na literatura contemporânea há uma
certa predominância da temática urbana, você vem por outro viés,
explorando, quase sempre, a temática rural. Qual o motivo da
escolha?
AF - O urbano é hegemônico, mas precisa dialogar com a sua
contraface. Os grupos humanos das pequenas localidades, com seu
imaginário, valores e modo de vida peculiares, existem e devem ser
incluídos na literatura. A narrativa popular, a linguagem rural, os
causos, tudo isso ainda é matéria-prima para a criação literária,
pois tem presença e vitalidade na cultura. São reservas de
potencialidades e valores humanos cada vez mais raros no caos
urbano.
JIVM - Você tem recebido alguns prêmios que
lhe dão destaque e reconhecimento por parte da crítica. O que falta
para obter o reconhecimento do leitor comum?
AF - O leitor comum não acompanha a vida literária, de modo a saber
quem são os autores indicados pela crítica. A atuação literária dos
autores em geral passa quase despercebida do público. O
reconhecimento é um processo lento e a notoriedade é algo relativo,
passageiro, acidental. Ou se escreve um best-seller, ganha-se o
público e se perde a crítica; ou tenta-se, com muita paciência,
ampliar a atenção dos leitores a cada livro publicado.
JIVM - Nos seus contos, a morte é a temática
predominante. Por que essa atração por um tema do qual normalmente
as pessoas querem fugir?
AF - Embora muitos fujam da verdade, é obvio que a morte é
intrínseca ao ato de viver. Nos meus contos, ela é sempre uma
experiência profundamente humanizada e compartilhada, um momento de
reflexão, entendimento e descoberta de sentidos e valores. As
personagens vivenciam a perda de um ente querido, um amigo ou um
parente; e isto, como algo inerente ao viver, torna-os mais maduros
e conscientes de suas relações afetivas e de sua condição
existencial. No fundo, ressalto a dignidade da morte como um
aprendizado para os que continuam na vida.
JIVM - O conto que encerra o livro, “A voz de
Herberto”, é uma homenagem a Herberto Sales. Em que medida os
escritores baianos são referências em sua obra?
AF - Os autores lidos e assimilados pelo gosto deixam sua
contribuição na formação de um escritor. Desde a literatura
clássica, o diálogo intertextual é uma força motriz da criação.
Vários autores participam de minha formação, pois a partir dos oito
anos já lia Monteiro Lobato, Hélio Pólvora e, mais tarde, Jorge
Amado, Adonias Filho, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, Machado
de Assis, Miguel Torga, Herberto Sales, Antônio Torres e muitos
outros. Ao me tornar um profissional das Letras, ler passou a ser a
minha atividade principal. Eu lido com literatura diariamente.
JIVM - Como você define o livro O canto de
Alvorada?
AF - Trata-se de um conjunto de sete contos, em que mantenho a
temática das vivências, sentimentos e experiências de
autoconhecimento, com personagens simples e populares. Dois contos
são ambientados em Salvador e na ilha, os demais se passam em
ambientes urbanos de cidades interioranas. As personagens vivem
fatos, pensam e sentem seu mundo, refletem sobre sua situação,
despertando a consciência sobre sua própria condição. Os narradores
contam histórias completas, com temas definidos, enredos
desenvolvidos e conclusões. Os contos jogam com o ludismo do ato de
narrar, da própria escrita e dos temas, para provocar determinados
efeitos de leitura.
JIVM - O que poderia ser feito para despertar
o interesse do público para a literatura, sobretudo do público
baiano para com os seus escritores?
AF - É urgente que se crie um programa de incentivo à leitura para
despertar o prazer e a consciência da importância do ato de ler.
Deve ser uma ação contínua. Em geral, os programas escolares são
obcecados por tarefas e aferição de notas. Isso, em vez de formar,
desestimula e espanta o leitor. Um leitor não se forma com a ameaça
de reprovação, mas com incentivo permanente, motivação, diálogo,
discussão aberta de textos, indicações de leituras livres, encontro
com os autores etc. Literatura é arte, não é simples disciplina
escolar. No fundo, literatura não se ensina, mas se vivencia. Cada
leitor tem seu próprio ritmo e seu próprio interesse. Para chegar a
ler e apreciar um Machado de Assis, é preciso passar por etapas e
experiências que preparem a visão de mundo e a percepção dos valores
culturais. Não se pode impor os grandes autores, sem que o leitor em
formação esteja maduro e preparado para essa experiência.
JIVM - Como se faria a relação entre o leitor,
o autor e a obra?
AF - A escola devia orientar o leitor e não lhe impor livros que não
lhe dão prazer. Além disso, é preciso baratear o livro e fazer
campanhas permanentes de aquisição. A pessoa investe num livro se
achar que ele acrescenta valor a sua vida. Para uma pessoa poder
comprar um livro, é preciso que tenha emprego e salário suficiente
para algo mais do que a mera sobrevivência material. A sociedade
deve valorizar o livro e o autor. Hoje, promove-se tudo, através da
publicidade, menos livros e autores. Se o Ministério e as
Secretarias de Educação quisessem, podiam fazer fortes campanhas de
leitura, estabelecendo, através do consenso de especialistas,
elencos de obras e autores que seriam postos em evidência, seriam
editados em grande quantidade, seriam levados a encontros com os
alunos nas escolas. Uma sociedade que não forma leitores, corre o
risco de ter cidadãos alheios e superficiais, incapazes de perceber
as questões do mundo e reagir crítica e construtivamente a elas.
JIVM - Como você vê o panorama literário
contemporâneo da Bahia?
AF - Há excelentes autores na Bahia, mas a nossa vida literária é
ainda pouco compensadora. Aqui a literatura acaba sendo uma
atividade das horas vagas, ocupação secundária, atividade de amador.
Com isso, é difícil um autor investir tempo e dedicar-se a produzir
uma obra organizada, estruturada, com um perfil definido e uma
intenção clara. Falta-nos uma engrenagem editorial, com editores e
público efetivos, em que o objeto literário tenha valor prático e
visível. Na falta disso, em geral os autores investem seu tempo e
não têm uma recompensa à altura de seu esforço. Livros são lançados,
aí mesmo evaporam, quase não há repercussões críticas, nem negativas
nem positivas. Uma sociedade letrada pressupõe um sistema literário
eficaz, com autores, leitores, crítica e divulgação, nos termos
propostos pelo teórico e historiador literário Antonio Candido.
Nosso sistema é ainda muito precário, paroquial, campo de ação entre
amigos. O círculo literário é restrito, de modo que os autores estão
ainda sujeitos aos desvios do beletrismo, com suas derivações e
conseqüências, com prejuízo da atividade intelectual propriamente
dita. O panorama literário é tímido, muitos livros ficam só na
primeira edição, os autores não são conhecidos pelos leitores (que
leitores?!), só um ou outro autor baiano ascende ao nível nacional.
No entanto, sejamos otimistas: vamos à luta, pois a Bahia é pródiga
em talentos e há um grande trabalho a fazer.
JIVM - O que você tem a dizer aos escritores
que estão iniciando?
AF - Em primeiro lugar viver e refletir sobre essa experiência
cotidiana de estar no mundo, procurar compreender a si mesmo e aos
semelhantes em suas ações e reações. Não há literatura sem vivência
e reflexão. Em segundo lugar, ler muito e mais um pouco, sobretudo
vivenciar e fruir a arte em geral: literatura, pintura, música,
teatro, etc. A bagagem da vida é a matéria-prima que o autor
transforma em sua arte, não pela simples confissão, mas pela
transubstanciação. Criar é antes de tudo aprender.
JIVM - No seu entender, qual a função que a
crítica exerce?
AF - A crítica é uma atividade árdua, muito difícil, quase
impossível. No entanto, tentemos. Sem essa atividade tantas vezes
mal compreendida, muitas vezes mal exercida, inúmeras vezes tão
necessária, só teríamos o banquete das glórias vaidosas ou o breu da
indiferença reflexa. A função da crítica é vigiar narciso.
José Inácio
Vieira de Melo é poeta, autor dos livros Códigos do Silêncio (2000)
e Decifração de Abismos (2002) e do livrete Luzeiro (no prelo).
Nota do Editor
Um escritor baiano em Paris e Budapeste
O escritor baiano
Aleilton Fonseca embarca no dia 28
próximo para França e daí para a Hungria, onde lançará seu novo
livro de contos O canto de Alvorada, vencedor do Prêmio Herberto
Sales da Academia de Letras da Bahia e Brakem, e publicado pela
editora José Olympio. O livro será apresentado a um público bilíngüe
formado de escritores, estudantes e professores de literatura de
língua portuguesa. Em Paris, o evento será realizado na Sala Jorge
Amado, na sede da Embaixada Brasileira. Na oportunidade serão
lançadas também as publicações Latitudes: cahiers lusophones, uma
revista literária bilíngüe editada em Paris, e a revista baiana
Iararana nº 8, editada em Salvador, que traz um dossier em comum com
aquele periódico francês. Esta colaboração faz parte do intercâmbio
entre as duas revistas, iniciadas no ano 2000, através dos editores
brasileiros Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro, e o responsável
editorial francês, Dominique Stoenesco, que, além de professor de
português em Paris, é um entusiasmado divulgador da literatura
brasileira na França, através de artigos, resenhas e entrevistas com
escritores. Segundo Aleilton Fonseca, estes contatos e convites são
resultados de sua passagem pela França, no período de fevereiro a
abril de 2003, como professor visitante da Universidade de Artois,
oportunidade em que, inclusive, fez palestras na Universidade
Nanterre-Paris X e Universidade Sorbonne, sobre a poesia brasileira
no século XX.
No dia 03 de outubro
de 2003 será a vez de Aleilton falar de seu trabalho e apresentar
seu livro no Departamento de português da Universidade EL de
Budapeste, na Hungria, onde manterá contato com alunos, professores
e estudiosos de literatura brasileira e portuguesa, como Pál Ferenc
e Jenö Farkas, respectivamente tradutor e editor húngaros. Nesta
viagem, Aleilton estará divulgando, além da revista Iararana, onde
publica um panorama da poesia baiana no século XX, também alguns
autores contemporâneos de sua geração. Otimista e animado, o
escritor e professor de Letras (UEFS/BA), afirma que o objetivo de
sua viagem é divulgar o seu trabalho, mas, principalmente,
contribuir para a divulgação da literatura baiana e brasileira atual
na França e na Hungria.
Sucesso, mestre Leilto! Você merece muito mais!
Soares
Leia Aleilton Fonseca
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