Jorge Lúcio de Campos
Inquietudes e A folha de ar, de
Lucelena Ferreira e Joaquin Gutiérrez
Sem dúvida, outras duas boas incursões
pela prosa chanceladas pela Sette Letras. De um lado, um auspicioso
vir-à-luz - o da 'contadora de histórias' Lucelena Ferreira. Do
outro, o tom "quase picaresco" do costarriquenho Joaquín Gutiérrez.
Dois textos igualmente marcados pelo calejamento e que primam por
uma sutil apreensão do tema-vida.
Mesmo sendo um livro de estréia, é
possível reconhecer em Inquietudes qualidades nada recorrentes entre
os estreantes: concisão, trato poético, intimidade com a tessitura
narrativa... Embora funcione uniformemente, a prosa de Lucelena se
presta a momentos notáveis: belas imagens afloram dos fragmentos -
caso em 'Infância' ("sujeito dado a fingimentos de sol em bosques
escurecidos") e 'Pedro' ("a boca que abriga destroços"), entre
outros.
Novamente é conferido à vida o status
de figura e fundo. O que Inquietudes relembra, descreve ou supõe é
feito enquanto uma compensação no tempo, enquanto um suave
detalhamento do existir: "Perdi o adjetivo. A vida é somente vida".
Como que recortadas por trinta e duas 'fragmentos-janelas', as
paisagens se encaixam uma nas outras, agenciando uma espécie de
mosaico visual que instiga o leitor a preencher, a seu modo, os
espaços em branco.
Assim conduzido, telegraficamente,
cada pequenino núcleo atua como um frame do cotidiano, uma
fabricação factual-residual que envolve gostos e anamneses. A cena é
sempre intimista: a figura do pai e a do outro-masculino são
usinados em função de um eu-mulher (de várias máscaras) que, sem
cessar, os fia e desfia. É nesse nível de crescente redescoberta (e
também por sua cativante contundência), que é possível destacar
enredos como os de Separação' e 'O velho'. Mas como - e isso é
a própria autora quem afirma - "nenhum azul vai (mesmo) doer",
parece natural que (ao menos no âmbito da ficção) a vida ainda valha
a pena.
Já A folha de ar de Gutiérrez foi
originalmente publicada em 1968. No prefácio, um Pablo Neruda
lacônico chama-nos a atenção para sua "tamanha capacidade de nos
prender no fio do sonho e da desventura". Alfonso Aguero, o
personagem principal, narra para um amigo de infância (Quincho) as
peripécias de uma vida (como a sua) aparentemente fadada ao círculo.
A viagem que implementa ao México em busca de um 'país maior', de um
mundo que lhe fizesse enfim sentido (cf. o segundo capítulo que
inclusive explica o curioso título do livro) é o fio condutor de uma
trama que, embora se desdobre com grande rapidez, inevitavelmente se
presta a tocar bem fundo a sensibilidade alheia.
Em poucas horas (talvez minutos, se
nos prestamos a devorá lo), o que fica da leitura de A folha de ar é
uma impressão confusa de piedade e solidariedade por alguém que,
mesmo encarnando a figura do anti-herói, é a cara de cada um de nós.
Alfonso, em sua busca inútil de um ideal perdido, de uma compensação
impossível que (talvez só) o amor (de Teresa) pudesse lhe dar,
acaba, como era previsível - ao se diluir no interior da própria
trama - se tornando universal como "uma folha de ar, um sonho grande
do qual nascem outros cada vez mais modestos, até chegar ao último,
o menorzinho, o que o vento carrega". Certamente não é mais do
que poderíamos esperar...
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