José Nêumanne Pinto
Semeando o Infinito
Diante da torrente de rimas forjadas
no bojo da viola dos irmãos Patriota, de São José do Egito,
Pernambuco, o modernista Manuel Bandeira, que figura entre os
melhores poetas que este século produziu, teve um arroubo de
modéstia e disse que bons de verdade eram aqueles toscos bardos
sertanejos, não ele. Linda modéstia, não? Sim, só que não é apenas
modéstia, mas também uma mistura bem dosada de admiração e inveja.
Sei bem disso. Então, também não
morro de inveja, quando ouço o senador Ronaldo Cunha Lima fazer um
discurso de campanha eleitoral todo em versos? Ou quando vejo
Oliveira de Panelas improvisar uma noite inteira sem cansar aquela
goela de Vicente Celestino do interior de Pernambuco, quando eu,
pobre de mim, tenho de suar às bicas para arrancar um versinho ali e
outro acolá?
A verve dessa gente que encontra as
frases certas sem precisar sequer procurá-las, atravessa a História
e não respeita a Geografia. A venerável mestra Nely Novaes Coelho,
do alto de sua cátedra de literatura na USP, me confessou, um dia
destes, que pede a Deus vida e ânimo para tentar decifrar onde
repousa a força da palavra dos escritores nordestinos. Podem ser
secos como Graciliano Ramos, coloridos como Jorge Amado ou
inventivos como João Guimarães Rosa, mineiro, mas sertanejo, lá das
bandas da Bahia do Bode do violeiro Téo Azevedo, que gostaria de
fazer de Montes Claros capital do Estado inexistente, mas bem que
poderia ser a Vitória da Conquista do bode Elomar e de Glauber
Rocha. Como Sansão da Bíblia e He-man da tevê nossa de hoje em dia,
todos eles têm a força.
Candace Piette, uma repórter que
grava entrevistas irradiadas pela BBC londrina e produz textos
impressos para o respeitável The Guardian, se deixou fascinar pelos
repentistas cujos desafios viu e ouviu no festival de viola
nordestina, realizado aos domingos no Teatro da UMES, no Bexiga, sob
o comando do prolífico Assis Ângelo. E ficou a se perguntar que
relação aquela gente mantinha com o mundo do verbo.
Questionado, dei-lhe uma explicação,
de que gosto muito e à qual sempre recorro, quando alguém tenta
fuçar os mistérios que explicam o surgimento de um gênio literário
como o Zé Lins do Rego de Fogo Morto, no meio da sujeira do melaço
dos engenhos da Zona da Mata. O culto à palavra nasce da cultura da
escassez.
Por que será? Talvez porque tintas e
telas custem caro. Pedro Américo saiu de Brejo de Areia, Paraíba,
mas era exceção e fez do imperador padrinho. Câmeras, microfones,
rebatedores, atores? Estão pela hora da morte. Então, cinema, nem
pensar. Apesar de Linduarte Noronha, Ipojuca Pontes, Walter e
Vladimir Carvalho, a sétima é uma arte proibitiva no miserê
nordestino. A música requer instrumentos e o teatro, salas e
cenários. Os excepcionais Ariano Suassuna e Quinteto Armorial
confirmam a regra. Resta, então, a literatura, porque a palavra
falada é gratuita e a escrita depende de tinta e papel, que não
custam tanto.
Talvez o mistério do encantamento,
que, graças a Deus, prolonga a vida produtiva da veneranda mestra,
esteja exatamente aí. A palavra é disponível, como o pó da estrada,
e ainda tem aquele sabor puro de água cristalina de cacimba de rio
seco. Como digna representante do gênero feminino, ela só quer ser
seduzida e acariciada. Quem já viu coisa e pessoa do gênero gostar
de ser maltratada, a não ser em provocação de Nelson Rodrigues, hein?
Isso vale para os poetas do campo e
para os da cidade. Todos eles convivem com fantasmas e aparecem
quando menos aguardados, "guardados entre livros e sapatos, em baús
empoeirados", conforme os descreveu, magnificamente, o uruguaio Leo
Masliah na linda canção "Guardanapos de Papel", gravada em português
por Milton Nascimento no disco novo, Nascimento. Seja o analfabeto
Zé Limeira, que ouvia no barulho do trem se aproximando os passos do
demônio, seja o cultíssimo Ivan Junqueira, que fez do ofício
religião, eles repartem suas ilusões "entre mortos e feridas",
pintam as olheiras dos outros e ainda pedem que não chorem.
Para eles, "nada disso importa,
enquanto eles escrevem, escrevem o que sabem que não sabem e o que
dizem que não devem". As palavras escritas, no belíssimo achado do
autor da versão da letra do uruguaio para o português do caolho
Camões, retorcem-se, confusas, em delgados guardanapos de papel,
"feito moscas inconclusas", que não voam, mas afundam no chão seco,
em sua tarefa de semear o infinito.
Como Leo Masliah escreveu, poetas
"falam de experiências pessoais, zonais, zonais, elementos mui
parciais, que, ajuntados, não são tais". E por que não os
prosadores, não é, Ivan Ângelo? Sansões de cabelos verbais, eles não
disputam glórias nem lauréis - pelo menos os verdadeiros, os que
dispensam a imortalidade vã, sendo, como são, simples como os
tambores de Minas, tornados por Milton poesia para os tímpanos.
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