José Nêumanne Pinto
Paz, o
verdadeiro guerreiro da luz
A guerra do militante da lucidez é a permanente
denúncia da estupidez das ideologias cegas
Conheci o "guerreiro da luz",
personagem favorito de nosso mais popular e (et pour cause) maldito
escritor, o mago Paulo Coelho. Mas não era um peregrino na Via
Láctea, a estrada de Santiago, nem um eremita no Sinai. O "guerreiro
da luz", meus amigos, Octavio, tinha nome de imperador romano e um
sobrenome que contradizia justamente sua principal característica, a
combatividade. Sua vida foi uma guerra permanente contra a tirania
da ignorância e a cegueira da fé ideológica. Seu nome era Paz e ele
escreveu: "não nascemos livres: a liberdade é uma conquista — e
mais: uma invenção".
Sua morte, anunciada por longa
enfermidade, agravada pelo incêndio, que consumiu sua coleção de
objetos de arte, colecionados em suas andanças pelo mundo, teve,
como não podia deixar de ser, ampla repercussão nos meios
intelectuais. Entre seus grandes colegas ouvidos, talvez o que tenha
reproduzido de forma mais fiel a importância de sua ação política e
de sua obra poética, sem dissociar uma da outra, foi o intelectual
espanhol Jorge Semprún. Segundo o autor de A Segunda Morte de Ramón
Mercader, o "maestro" conseguia ser, ao mesmo tempo, lúcido e
comprometido, qualidades que, de acordo com Semprún, "não costumam
ser freqüentes em uma só pessoa".
De fato, Octavio Paz foi um dos mais
ativos militantes políticos do século. Mas ele militou exatamente
contra a militância estúpida, produzida pela cegueira política. O
que ele tentou demonstrar nos artigos e ensaios de O ogro
filantrópico (o título já dá a idéia precisa e completa do que ele
pensa de seu tema, o Estado ao mesmo tempo tirânico e paternalista,
burocrático e providencial, que reinou, impávido colosso, neste
nosso século, em que ele brilhou) é que existe mesmo a boa
literatura política.
Só que esta não está a serviço de uma
causa. Mas, ao contrário, brota quase sempre dos exames das
realidades de uma sociedade: o poder e seus mecanismos de dominação,
as classes e seus interesses, os grupos e os chefes, as idéias e as
crenças. O que ele não aceitava era a literatura de propaganda. Nem
podia. Ele adorava citar, em suas entrevistas, um de seus lemas
favoritos cunhado pelo coleguinha britânico William Blake: "os bons
poetas estão do lado do diabo".
Só que os escritores que pretendiam
pôr sua arte a serviço de uma mensagem ideológica, costumavam fingir
venerar a revolução, mas cultuar o establishment. O livro de nosso
século 20, o mesmo que hospedou Octavio Paz no planeta Terra, foi
aberto pelos bigodes de Máximo Gorki, que, na companhia de seus
amigos bolcheviques, primeiro Vladimir Lênin, depois Josef Stalin,
lançou em solo russo as sementes do realismo socialista. A
literatura precisava, diziam eles, ter algum tipo de função
política. Não pode ser um fim em si mesmo, mas um meio de
conscientização e reeducação dos homens, não dos indivíduos, mas das
massas. Soterrado por essas idéias, o gênio de Vladimir Maiakóvski,
minado pelo desespero, sucumbiu ao suicídio. Isaac Babel e Ossip
Mandelstam foram imolados no Arquipélago Gulag e o último desses
penitentes renitentes foi o magnífico Josef Brodski.
A palavra divina do chefe era trazida
ao cotidiano pelo apóstolo húngaro George Lukácz, sob as bênçãos do
georgiano, vencedor da guerra mundial. Octavio Paz se insurgiu
contra essa avalanche, mas não o fez de forma a ser absorvido como
politicamente correto nem em nome da revolução. Ao contrário, sem
temer os desafetos, que há havia feito e só tenderiam a aumentar,
como ele sabia, apelou para as armas da tradição. No prólogo de O
Ogro Filantrópico, seleção de artigos e ensaios críticos, nos quais
faz uma análise assumidamente "não sistemática" do Estado
burocrático, que se tornou moda no século XX, seja à esquerda, seja
à direita, ele vai avisando, logo de saída, que toda boa literatura
é rebelde, intranqüila, insatisfeita e ímpia, em relação à
autoridade estabelecida. Recorre para apoiar seu argumento a
exemplos sólidos, que vão de Swift a Joyce e de Laclos a Proust.
"A literatura moderna não demonstra
nem prega nem arrazoa; seus métodos são outros: descreve, expressa,
revela, descobre, expõe, quer dizer, põe à vista as realidades reais
e as não menos reais irrealidades de que estão feitos o mundo e os
homens. Os escritores modernos, quase sempre sem se o proporem, ao
mesmo tempo que edificavam suas obras, realizaram uma imensa tarefa
de demolição crítica; ao enfrentar a realidade real — o lucro, a
paixão, o desejo, a morte — e as normas e ao descobrir o sentido no
sem sentido, fizeram da literatura uma espécie de redução ao absurdo
das ideologias com que sucessivamente se justificaram e mascararam
os poderes sociais", escreveu.
Já está visto pelo acima descrito que
a primeira característica importante deste protagonista do século
20, para a qual chamo a atenção do leitor, é exatamente sua guerra
sem tréguas, e muitas vezes solitária, contra a "patrulha
ideológica". Travou-a por ter, antes de quase todos os demais, a
lucidez (lembrada por Semprún, hoje também um dissidente, na sua
linha) de perceber a falácia e as meias-verdades da pregação de um
dos mitos de nossos tempos, a revolução. Segundo Octavio Paz, "em
nosso século, a revolução foi a máscara da tirania".
Ele enxergou e analisou, com precisão
de cirurgião, esse processo de transformação das brigadas
mudancistas, que diziam lutar pela liberdade, em patrulhas
obscurantistas, que delatavam, isolavam e puniam de todas as formas
quem ousasse levar à prática aquele famoso lema de Millôr Fernandes:
"livre pensar é só pensar". Seu pensamento a respeito, límpido e
sensível, foi traduzido em palavras num ensaio: "O marxismo tem
sido, contraditoriamente, um pensamento crítico e uma ortodoxia. Na
Segunda metade do século 20, cessou de ser crítico e se converteu em
um dogmatismo pseudorreligioso. Nos ajudou a pensar livremente e
hoje é um obstáculo que impede a liberdade do pensamento".
Segundo Octavio Paz, "Lenin e os
bolcheviques arrancaram o martelo das mãos da classe operária e os
entregaram a uma suposta vanguarda, o partido comunista". E ele
mesmo concluiu: "Estranho destino. O marxismo, que foi pensado e
planejado como uma arma da classe operária dos países industriais do
ocidente, hoje é a ideologia das nações atrasadas da periferia,
pouco ou insuficientemente industrializadas, dependentes do exterior
e com proletariados recentes e pouco numerosos. O marxismo foi um
internacionalismo revolucionário, que se propôs apagar fronteiras e
acabar com o Estado. Hoje é um nacionalismo e uma estadolatria".
Na América Latina, que ele conhecia
muito bem, o marxismo, segundo sua visão deixou de ser uma ideologia
de classe operária e menos ainda dos camponeses, "sendo adotada por
uma classe média exasperada e desesperada". Nacionalismo, populismo
e adoração do Estado são, segundo ele, os principais ingredientes do
discurso marxista na América Latina.
Hoje, isso tudo parece óbvio, mas é
preciso lembrar que, quando tais textos foram escritos, quem ousasse
pensar contra a corrente dominante dos partidos comunistas seria
facilmente acusado de estar a soldo do imperialismo ianque. O
próprio Paz — que se definia como um "esquerdista desiludido"- não
seria imune a isso. Fotografias suas foram incineradas na frente da
embaixada norte-americana, na Cidade do México, em 1990, quando,
merecidamente, recebeu o Prêmio Nobel da Literatura. A ironia é que,
22 anos antes, o poeta havia renunciado à embaixada do México na
Índia, em protesto contra o "massacre de Tlatelolco", em 1968,
quando a polícia, reprimindo os estudantes, produziu um banho de
sangue no campus da Universidade.
A indignação dos barulhentos rebanhos
esquerdistas contra o magnífico poeta era justificada pelas surras
de chicote ético que gostava de aplicar no papa deles todos, o
filósofo francês Jean-Paul Sartre, com quem chegou a partilhar mesas
do café Pont Royal, em Paris. Num artigo - "Memento: Jean-Paul
Sartre" -, sobre a morte do filósofo, que ele criticou duramente
quando apoiou o terrorismo internacional, considerando-o duplamente
culpado, por ser mestre e militante, Paz não foi cáustico, mas
também não cedeu ao amolecimento latino, comum quando o adversário
ideológico morre. "As idéias e as atitudes de Sartre justificaram o
contrário do que ele se propunha: a desenfadada e generalizada
irresponsabilidade dos intelectuais de esquerda (sobretudo os
latino-americanos) que, durante os últimos 20 anos, em nome do
'compromisso' revolucionário, a tática, a dialética e outras
lindezas, elogiaram e apoiaram os tiranos e os verdugos", escreveu,
sem explicitar uma condenação, mas também sem passar, em nome do
luto, ao largo dos erros monumentais do autor de A Náusea.
A estas alturas do campeonato, antes
que o leitor o imagine como um apolítico ou um adversário da
política é bom esclarecer que Paz, o peregrino da luz, não pode ser
confundido como alguém capaz de enxergar apenas o lado estético da
literatura. Não foi um hedonista do texto, apesar de ter possuído um
estilo invejável, como lembrou agora, por ocasião de sua morte,
outro Prêmio Nobel, o romancista espanhol Camilo José Cela. Segundo
este, ele "foi um escritor completo, um grande poeta e um ensaísta
de primeira linha".
Paz não era também um escravo dos
maneirismos literários, apesar de haver confessado, certa vez, ter
aprendido inglês apenas para ler a poesia inglesa e norte-americana.
Seu gosto literário se revelava nos mínimos detalhes, que não
desprezava. Quando alguém lhe pedia a definição de sociedade, ele
gostava de responder com uma frase usada por Karl Marx no Manifesto
Comunista: "Nas águas geladas do cálculo egoísta". "Isso é a
sociedade", resumia. E explicava por que gostava da frase: o
filósofo alemão, autor de textos cuja leitura produzia deleite
estético para quem soubesse deles usufruir (como O 18 Brumário de
Luís Bonaparte), havia engendrado, em espanhol, língua materna do
poeta, "um alexandrino perfeito".
Paz tinha uma cultura imensa e um
estilo invejável. Muito embora escrevesse poesia e prosa ensaística
com a mesma intimidade e o mesmo desembaraço, alguns de seus poemas
mais importantes terminaram funcionando eles mesmos como manifestos
de seu modo de pensar. No longo e belo "Noturno de San Ildefonso",
descreveu sua batalha ideológica com clareza e crueza dificilmente
encontradas em seus escritos teóricos. No poema está escrito: "A
história é o erro./A verdade é aquilo,/mais além das datas,/mas
aquém dos nomes,/que a história desdenha". E a poesia? "A
poesia,/ponte suspensa entre história e verdade,/não é caminho rumo
a isso ou aquilo;/é ver/a quietude no movimento,/o trânsito/na
quietude".
Em "Vuelta", poema que dá nome a
livro, homônimo da revista literária, que congrega seus admiradores,
pois não é mestre de arrebanhar prosélitos, mas poeta de seduzir
leitores, ele abordou alguns de seus temas mais favoritos. O
primeiro deles é a luminosidade. O sol, tema central dos astecas,
seus ancestrais, comparece logo no início: "Vozes ao dobrar a
esquina/vozes/entre os dedos do sol/sombra e luz". O segundo é o
movimento. Logo em seguida aos acima citados, aparecem versos assim:
"Caminho no rumo de trás/no rumo do que deixei/ou me deixou". Em
"Pedra de sol", também título de poema e de livro, esses mesmos
temas recorrentes já haviam aparecido juntos: "um caminhar de rio
que se curva,/avança, retrocede, dá meia volta e chega sempre".
"Caminho sem avançar", escreveu ele e cá estamos novamente de volta
a "Vuelta". Renato Pompeu, colega deste caderno, o definiu
corretamente como um "alquimista de culturas". Octavio Paz arrancou
suas raízes mexicanas e as depositou numa ampla coleção de frascos
de aguardentes poéticas ocidentais e orientais. Era um viajante e de
suas peregrinações sempre saía com objetos de arte e versos. Não era
um tradicionalista, pois namorou a fértil herança mallarmaica com um
poema que ganhou o mundo, Blanco (Branco). Mantinha relações
cordiais, por exemplo, com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos,
poetas concretos paulistas. Esse namoro com a vanguarda, contudo,
não o afastou de uma relação amorosa com a palavra. Era ele quem
dizia que "a palavra é a amante e o amigo do poeta, seu pai e sua
mãe, seu deus e seu diabo, seu martelo e sua almofada. Também é seu
inimigo: seu espelho".
E também ele definia melhor do que
qualquer exegeta de sua obra as entradas de memória e curiosidade em
seus escritos. Registrou em Paixão Crítica: "No ato da criação
intervêm a tradição e a invenção. Para fazer um poema, são
necessários certos padrões, como o metro e a rima.
Ademais, as figuras retóricas. Tudo
isso vem já dado, a tradição o transmite ao poeta. Mas, ao mesmo
tempo, você tem de dizer algo novo, pessoal. Ao escrever um poema,
você inventa algo e, algumas vezes, repete coisas já muito antigas.
Se você inventa demais, é desastroso: seu texto é incomunicável. Se
inventa pouco, também é um desastre: o texto não diz nada que possa
interessar aos demais. Incomunicação por obscuridade excessiva ou
por não menos excessiva claridade. É necessário achar um
equilíbrio".
Agora, que já não se encontra mais
entre nós, embora sua obra permaneça, o aguerrido Paz, guerreiro da
luz, tem, enfim, sua obra vasta, imensa e riquíssima concluída. Nada
mais há a pensar, a escrever, a revisar, a refazer. Tudo está
concluído. O ponto final foi posto. É possível, pois, lembrar o
formidável conjunto que ela forma e a sólida coerência dos pilares
em que ela se apóia.
Foi ele mesmo quem escreveu a
respeito, em O Labirinto da Solidão: "A morte é um espelho que
reflete as gesticulações vãs da vida. Toda esta matizada fusão de
atos, omissões, arrependimentos e tentativas — obras e sobras — que
é cada vida, encontra na morte, senão o sentido ou a explicação, o
fim. Diante dela nossa vida se desenha e imobiliza. Antes de
desmoronar e fundir-se ao nada, é esculpida e toma forma imutável:
já não nos modificaremos, a não ser para desaparecer. Nossa morte
ilumina a nossa vida. Se a nossa morte carece de sentido, também a
nossa vida não o teve".
Octavio Paz
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