José Nêumanne Pinto
Fagner revela um grande poeta secreto
O poeta cearense
Francisco Carvalho chegou aos 77 anos de idade sem pagar os
dividendos que a fama normalmente cobra de talentos extraordinários
como o é o dele. Pública e notoriamente acanhado, nunca teve algo
que se possa chamar de uma vida social e, quando sai de casa, quase
somente em bastante esporádicas visitas à Academia Cearense de
Letras, onde tem cadeira cativa, esse cantor da solidão ("meu Deus,
essa cadela insigne, anda comigo e meu destino") se comporta de
forma tão discreta que quase nunca é percebido, nem mesmo pelos
velhos amigos. Embora tenha recebido o Prêmio Nestlé de Literatura
de 1982 pelo livro Quadrante solar, um dos 30 que publicou em
meio século de militância poética, o que lhe valeu o reconhecimento
da crítica nacional, e continue a produzir de forma copiosa, sim,
mas nunca enxundiosa, a definição que melhor cabe a sua figura é a
do título do caderno especial lançado há alguns domingos pelo jornal
O povo: "o homem invisível". Comparado com ele, seu colega
itabirano Carlos Drummond de Andrade era um "exibido".
Agora, contudo, vai
ficar cada vez mais difícil para ele não ser abordado na rua e não
ter a casa, onde costuma se reunir apenas o núcleo familiar composto
pelos próprios filhos, netos e bisnetos, invadida por fãs
embasbacados com a natureza singular de sua lírica no panorama árido
(e estéril) da poesia brasileira contemporânea. É que um de seus
leitores, outro cearense, Raimundo Fagner, astro de primeira
grandeza do negócio do espetáculo e da indústria fonográfica
nacionais, pôs melodias e interpretou cinco poemas dele em seu útimo
CD, Donos do Brasil. Depois de ter feito suas platéias se
esgoelaram cantando o soneto Fanatismo, da galega Florbela
Espanca, convencido um dos maiores poetas brasileiros, o maranhense
Ferreira Gullar, a verter uma canção hispano-americana para fazer
com ela enorme sucesso popular, apresentado ao público urbano o
poeta matuto Patativa do Assaré e dado a conhecer o espanhol Rafael
Alberti, o compositor e cantor jogou a luz dos próprios holofotes no
personagem secreto da cidade onde ele também vive.
A sutura
inconsútil- Francisco Carvalho é, sem favor nenhum, um dos
melhores poetas em atividade no Brasil. E Raimundo Fagner mergulhou
fundo em sua produção (reconhecida pelo especialista Gilberto
Mendonça Teles como "uma das mais volumosas da atual poética
brasileira") para dela extrair e reproduzir momentos de beleza
sublime. É o caso do poema O bicho homem, que abre o CD. O
texto, apoiado no jogo dos contrastes, faz parte do veio filosófico
da obra, cuja unidade foi detectada pelo presidente da Academia
Brasileira de Letras, o também poeta Ivan Junqueira, que anotou: "Os
poemas de Francisco Carvalho possuem aquela unidade descontínua
própria da lírica". O poeta, crítico e professor pernambucano César
Leal realçou esse caráter unitário do material trabalhado pelo
compositor e intérprete, ao escrever: "É como se ele escrevesse um
poema único, tamanha a coesão de um todo, cujas partes parecem
articular-se graças a uma sutura que se diria mesmo inconsútil".
O poeta já havia
escrito "O homem não é um sonho / nem alguma utopia. / O homem é
senhor de seu destino / e dos caminhos que passam / por dentro da
alma" (Desenho rupestre). E agora radicalizou na mesma
direção: "Que bicho te oferta um ramo de rimas / e a sombra dos
mortos semeia gemidos por sete Hiroximas?" No momento mais feliz da
parceria, Fagner incorporou a esses versos profundos e instigantes
uma dolente seresta brasileira de uma beleza e de uma simplicidade
que a fazem ficar à altura dos versos que a inspiraram.
O boi e outros
bichos - Mas o homem não é o único bicho a merecer a atenção do
poeta, como captou Fagner. Fanático por vaquejadas, este sertanejo
de Orós percebeu a riqueza da tauromaquia nos poemas selecionados
pelo autor em Memórias do espantalho, seleta dos 19 livros
que editou de 1971 para cá. Em Notícia do boi (Rosa dos
eventos, 1982), o poeta constatou: "O boi às vezes pasta / a
vontade de não pastar". Agora, Fagner musicou o poema Esse touro
vale ouro e canta: "Esse touro quando muge / parte o arame das
estacas."
Cristão fervoroso,
camoniano inveterado, leitor atento de romances de cordel, fã de
Murilo Mendes, Manoel Bandeira, Euclides da Cunha, Carlos Drummond
de Andrade e Octavio Paz, dos quais se encontram muitos intertextos
e paráfrases em sua poesia, Francisco Carvalho goza de invejável
intimidade com o vernáculo. E cultiva um sense of humour
muito mais sertanejo (é natural de Russas, no interior do Ceará) que
britânico. Em Dialética do poema, ele escreveu: "Fazer um
poema não é dizer coisas profundas. / É ver as coisas como as coisas
não são." Essa contundência folgazã está presente no poema (aqui
reproduzido na íntegra) Cesta básica, um dos musicados por
Fagner, do qual vale a pena citar os dois versos finais: "Um quilo
de aipim, pra não morrer de esplim / Um tiro no ouvido, pra não
morrer de rir". O uso da palavra esplim (que significa enfado,
melancolia), quase nunca usada na comunicação cotidiana, reforça o
estranhamento desse fecho, sem dúvida antológico.
Impacto idêntico
será produzido pela decisão do astro da MPB de dar ao Brasil o
privilégio de conhecer a obra secreta desse poeta maior, embora
"invisível".
Cesta básica
Um quilo de arroz, pra não morrer de fome
Um quilo de água, pra não morrer de sede
Um quilo de pedra, pra não morrer de febre
Um quilo de lêvedo, pra não morrer de bêbado
Um quilo de ópio, pra não morrer de ócio.
Um quilo de aipim, pra não morrer de esplim
Um tiro no ouvido, pra não morrer de rir.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é
editorialista do Jornal da Tarde e autor de O silêncio do delator.
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