José Nêumanne Pinto
Melo
Mourão dedica livro ao `Rei do Baião'
Em "Invenção do Mar", o poeta, mais que fazer
literatura em versos, cria um bonito manifesto
O livro Invenção do Mar (Editora
Record, 366 páginas, R$ 28,00), poema épico de Gerardo Mello Mourão,
é dedicado, não a um poeta letrado, da vasta coleção erudita do
autor, mas, sim, a um tosco sertanejo, o sanfoneiro Luiz Gonzaga,
Rei do Baião e, além disso, "Homero cantador dos mares do sertão e
seus viventes". Não se trata de simples homenagem nem de mera
coincidência. Mais do que isso, é uma espécie de definição e também
de manifesto.
No Brasil, descoberto pelo mar ("O
mar fez o Brasil"), o mar português do qual desembarcou o padre
Antônio Vieira e que Fernando Pessoa soube cantar como ninguém,
sertão e oceano se fundem, confirmando a profecia do Conselheiro:
"Onde o sertão for mar e o mar, sertão".
Se é verdade que "o Brasil é cada vez
maior e cada vez mais longe, e nunca terminamos de achar o Brasil",
o descobridor do País dos Mourões navegou, com talento e maestria,
por oceanos, cujas profundezas abissais são povoadas pelos monstros
sagrados da intertextualidade. Seu poema, bem a propósito da
proximidade dos 500 anos do descobrimento e, principalmente, da
carta de Pero Vaz Caminha, é épico, por reportar à viagem de Cabral,
aquele Ulisses seiscentista, que veio até nós.
Mas também tem entonações bíblicas:
"No princípio era a rima e a rima era diante do mundo/e o mundo era
a rima, e o poema estava na rima"; "No princípio era a lenda/ e a
lenda era no sonho/e o sonho era lenda"; ou, ainda, "Pela primeira
vez o verbo se fez corpo,/mas a memória dos vivos sabe sempre: o
homem forte é mais forte sozinho".
O mosaico intertextual à T. S. Eliot
é da natureza da obra do poeta. Mas o que antes, alguma vez, possa
ter provocado estranheza por excessos de erudição, talhada até em
caracteres utilizados na Antigüidade Grega, desta vez encanta por
seu talento especial de encontrar a dicção própria, encaixando cada
citação em seu próprio contexto, calçando nos dedos do leitor luvas
de letras.
O que mais espanta - e encanta - no
novo livro do tradutor de Mao-Tse-Tung, Rilke e Parmênides é a sua
extraordinária capacidade de manejar o verso livre com um ritmo que
só pode se explicar pelos critérios da auditory imagination, do
citado Eliot - a música silente da poesia. Quando os modernistas o
adotaram, seus adversários parnasianos pensavam que o verso livre
daria cabo do privilégio da inspiração poética, pois qualquer um
seria capaz de versejar, fugindo aos manuais rígidos e complexos de
métrica e rima.
Na verdade, tais regras, por serem
fixas, é que representavam, elas mesmas, um facilitário e o
artesanato rítmico do verso livre. Esse sim, é exclusivo de quem
sabe: o eleito das musas. Isso, Gerardo Melo Mourão está dando mais
uma prova prática de sê-lo.
O ritmo alucinante, que Castro Alves
bebeu em Bocage, atravessa seu texto, como Virgílio em Dante e os
chineses e provençais em Pound. Tudo isso é mexido com doses
generosas de Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga, com
justiça bem lembrado no poema ("E agora, Musa, cobre o rosto e
deixa/o verde de teus olhos se espalhar na plantação"). A seu lado,
figuram outras fontes poéticas de primeira água, como Dantas Mota,
lembrado nos cantos dedicados ao alferes Joaquim José da Silva
Xavier, vulgo Tiradentes: "Bons ares são os ares de Vila Rica e em
suas/vielas e ruas estreitas, Dantas, como tu,/entre touceiras de
processos e escrituras, o doutor/Tomás Antônio Gonzaga pratica a
musa,/a emboscada de seu rosto furtivo entre sótãos e alçapões".
O primeiro épico contemporâneo
brasileiro refere-se, originariamente, a Luís de Camões, cuja obra
deu corpo definitivo e moderno ao vernáculo. Mas, ao nivelar Luiz
Gonzaga e Homero, o poeta foi além: a dicção camoniana ganha cor e
vida, ao ritmo do baião, que baila no bojo da viola dos repentistas
e no verbo de fogo de profetas sertanejos - o Conselheiro, Padre
Cícero e o negro forro Inácio da Catingueira no mesmo balaio -, um
Brasil inteiro ainda por descobrir.
Gerardo Mello Mourão
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