Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

José Nêumanne Pinto

 

Nos labirintos do laboratório da linguagem

Em seu novo livro, Ivan Junqueira leva o leitor a passear pelos

mistérios gozosos da poesia

 

O poeta não precisa ser forçosamente um pensador. Se a escrita fosse música, a poesia seria um instrumento de sopro, pois, da mesma forma como um saxofonista, um trombonista ou um trompetista expele o ar dos pulmões para produzir melodias moduladas pelas chaves pressionadas pelos dedos, o poeta expressa emoções que lhe vêm da alma, e não da prática externa. Se a matéria prima do prosador é a vivência (o que vêem seus olhos), a do poeta é a emoção - o que seu coração sente.

Toda definição é limitada e esta acima grosseiramente resumida, mais do que todas, porque a poética é a arte de insondáveis mistérios gozosos. Que sirva, pois, apenas de pretexto, sobre o qual se apóiem duas premissas: de um lado, a desnecessidade de um acervo de informações para a operação do poema e, de outro, a dificuldade na abordagem crítica objetiva de um texto literário necessariamente desvinculado de padrões. Isso funciona de tal forma que, sendo desnecessário que o poeta seja crítico, é de todo desejável que o crítico tenha a visão do poeta, embora não necessariamente seja um fazedor de versos.

Ivan Junqueira cumpre as duas tarefas com brilho e engenho. Poeta do primeiro time, situa-se entre os que produzem “uma poesia substantiva em que o pensamento se quer e se faz emoção” (definição dada por ele em texto de avaliação da obra de Dora Ferreira da Silva, reproduzido em seu novo livro, O Fio de Dédalo, Editora Record, Rio, 364 pp., R$ 25,00). Ou melhor, “na qual a emoção pensa e o pensamento sente”, como descreveu a obra poética de Moacir Amâncio. Ao comentar outro poeta, Ruy Espinheira Filho, Junqueira fala de si mesmo, o autor de A Sagração dos Ossos, referindo-se ao “segredo, ou o sortilégio, da grande poesia, aquela em que fundo e forma são uma coisa só”.

Ao reunir prefácios, resenhas e ensaios de apresentação de edições variadas num volume só, que pode vir a ser o último do gênero em sua vasta obra crítica, o Autor não teve a intenção imodesta, fique claro, de se expor. Este é um recurso do crítico para situá-lo como artista. E, assim posto, esclarecer que, apesar da vasta erudição, do trato permanente com línguas estrangeiras, das quais traduz com competência para a materna, e da atividade de editor de revista especializada, é, sobretudo, o olho do poe ta que usa a voz do crítico.Esteta militante, Junqueira é um poeta que nunca concede. Como crítico, porta-se qual um cão de guarda feroz do rigor que usa como artesão, não admitindo que os outros façam as concessões que ele próprio não faz.

Isso não o torna ranzinza nem professoral. Ao contrário. Os textos de seu livro mais recente são vazados de uma profunda compreensão humanista, que permite resgatar características muitas vezes escondidas sob pilhas de lugares comuns e julgamentos pré-concebidos, quando não preconceitos mesmo. Isso o leva a desvendar no ensaísta Zé Lins do Rego, pouco conhecido e constantemente repreendido pelo desleixo formal como romancista, “a consciência que possuía de que, ao escrever, se tornava partícipe de um processo cujo propósito escatológico era o de fazer com que a vida triunfasse da morte”.

A busca de luz entre escombros conduz com constância o crítico Junqueira a buscar ângulos inusitados com a paciência de um mergulhador obcecado pela pescaria da fortuna no fundo do mar. Sem abrir mão do rigor, ele inova, por exemplo, ao acrescentar visões diferentes (e instigantes) à fortuna crítica de Augusto dos Anjos, entulhada de clones de fórmulas feitas, que se moldam umas às outras, reproduzindo-se em espelhos borgeanos.

Aí é que o poeta dá a mão ao crítico no percurso dos labirintos do laboratório da linguagem. Logo na introdução de um livro que aborda poesia britânica, retira o poema em prosa do esquecimento, resgata Bruno Tolentino, apresenta Álvaro Mendes e trata Leonardo Fróes comme il faut, o Autor abre o jogo, dizendo pretender, acima de tudo, “remeter o leitor àquela antiga noção grega de labirinto, de dificuldade que nos instiga e desafia, pois labiríntico é qualquer texto poético, assim como o é a temerária (e amiúde vã) tentativa de decifrá-lo”. Junqueira não se dispõe a matar charadas, mas a guiar o leitor atento pelo conluio sedutor de enigmas cuja resposta nem a esfinge conhece. Trata-se de um exercício que exige esforço intelectual, mas é recompensado com gozo estético e o autêntico prazer do aprendizado.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde.
 

Ivan, 2003

Ivan Junqueira

 

 

Início desta página

Nelly Novaes Coelho