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José Nêumanne Pinto

 

O ABSURDO DA POESIA
 

 

O cineasta Ipojuca Pontes mobiliza forças de terra, mar e ar para comprar em Recife um exemplar da última edição de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo. É uma pena que em plena globalização ele precise mandar alguém comprar um livro em Pernambuco, quando deveria encontrá-lo no Rio, onde mora. Mas deixando a queixa de lado, convém tratar do que mais interessa: a presença permanente deste êxito editorial, repetidas vezes lançado e repetidas vezes esgotado.

Isso em parte se deve à verve do autor. Boêmio, jornalista de batente, escritor de bancada, Orlando Tejo teceu com tanta habilidade a esquisita saga do repentista negro, pobre e destrambelhado pelas áridas veredas do sertão nordestino que muita gente boa e séria trata seu livro como se fosse uma biografia. Uma leitura atenta mostrará que nele nada fica claramente definido, faltando, não apenas datas precisas, mas até mesmo a época aproximada em que teria vivido o protagonista, para quem o sentido não tinha nexo e a rima a tudo acudia. A imprensa registrou sua presença até no tour de force que o poeta Claufe Rodrigues está organizando para abarcar a produção poética brasileira no século 20.

De fato, se parca é a verdade histórica pesquisada e registrada em suas páginas de leitura irresistível, vasta é a imaginação do autor. E sobra charme em seu protagonista, sobre cuja conveniência não paira dúvida alguma. O que explica o fenômeno é o fato de ser muito rígido o cânone que reina absoluto sobre o repente poético sertanejo. O desafio é regido por regras formais draconianas e sobre ele paira um padrão moral inflexível, que não admite brechas nem folgas.

Violeiros respeitáveis que queiram escorregar pela pornografia explícita ou desafiar a lógica, injetando absurdo na veia poética, tentação irresistível, sempre tiveram no negro maluco, que andava a pé, porque só temia o diabo e sua forma de ferro, o trem a vapor, um pretexto oportuno para essas heresias. Se a existência real de Zé Limeira ainda é controversa para muitos especialistas ou amantes da poesia oral, não há quem não conheça pelo menos uma "limeirada", ou seja alguma afronta à moral vigente ou aos ditames da lógica plana versificada, metrificada, rimada e metida nas fatiotas justas do cânone repentista.

O poeta Asthier Basílio, filho de violeiro e universitário na área de letras, associou-se com o jornalista de televisão Rômulo Azevedo para documentarem num filme depoimentos de críticos e poetas populares expondo os rastros vagos da passagem de Zé Limeira, o homem e o mito, pela terra. Difícil concluir se o poeta do absurdo viveu, mas o absurdo da poesia vive, sim, na caudalosa produção anônima e coletiva de repentistas mortos, como Heleno Firmino, ou sobreviventes dos velhos tempos, como Otacílio Batista, descendente de Rabelais mantido a água de coco nas praias de João Pessoa. Sem contar o próprio Tejo, que, além de tecer, com habilidade rara, a biografia de quem não se sabe sequer se viveu, ainda sapecou em nome dele alguns dos mais hilariantes versos do acervo da literatura de Camões e Gregório.
 



José Nêumanne, jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde, é fã de Zé Limeira.

 

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João Scantimburgo